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Uso de heroína e temporalização

Havíamos terminado a crónica de Janeiro afirmando que a forma como percebemos o devir ? ou, melhor, como, colocados em situações diversas, o vamos percepcionando ? se constrói num processo cuja análise torna necessária a nossa atenção à complexidade dos pormenores que constituem o quotidiano. O conteúdo desta asserção pode ser estendido à vida dos junkies.

Muito se tem dito sobre a venda de objectos que, destinada à obtenção de dinheiro para a compra de droga e muitas vezes retirados da própria habitação, alguns dos utilizadores de heroína levam a cabo. As narrativas que comentam tais transacções tendem a apresentá-las como actos que se esgotam em si, como actos que, por consequência, surgem como uma antítese moral do processo a que corresponde a aquisição das coisas que integram os variados grupos domésticos. Enquanto instrumentos retóricos e performativos, estas histórias confirmam e reconstroem a ideia de que o uso de uma droga se constitui numa espécie de fronteira que delimita um território moralmente vazio e, nessa medida, atemporal: a vida dos junkies resume-se à simples repetição de tomas de heroína.
Mas alguns dos utilizadores de heroína ? se quisermos ouvi-los ? contam histórias que não correspondem a este estereótipo. E assim falam de objectos e das suas vendas, falando igualmente dos locais onde as levam a cabo, das pessoas com quem os transaccionam e dos sítios onde a droga é comprada e consumida. Ou seja, falando da centralidade que esta veio a adquir nas suas vidas, descrevem os quadros relacionais a que corresponde uma mobilidade por itinerários espaciais determinados.
A título de exemplo, vejamos um caso concreto. Na sequência de uma denúncia feita por vizinhos que conheciam o uso de heroína levado a cabo por si e pela mulher, F. contou-me como, na sequência da intervenção de dois organismos estatais, a custódia dos filhos lhes foi dolorosamente retirada, passando estes a viver com os respectivos avós. E acrescentou: ?Passei a viver só para o pó. Eu e a minha mulher?. Dando pormenores sobre as profundas modificações no respectivo quadro doméstico, disse que só depois veio a vender o seu frigorífico, que, com a ausência das crianças, passou a estar vazio e desligado. A este respeito, ocorre dizer que a dimensão protensiva que a utilização deste objecto encerra ? que é como quem diz, a forma como ele se engasta no devir ? mantém um sentido determinado quando ele se integra nas trajectórias espaciais correspondentes à frequência dos locais onde os produtos alimentares são adquiridos, quando ele se inscreve em relações cuja dimensão qualitativa vai sendo constituída num itinerário cognitivo que articula a decoração da casa com a dimensão identitária dos respectivos cheiros e sabores.
Dito de outra maneira, uma mudança operada em determinado elemento relacional é passível de se repercutir por todo o quadro no qual esse elemento estava imbricado. Ao mudar a acção que lhe é posterior ? e, inevitavelmente, ela muda ? são também transformados os referentes por relação aos quais o tempo é percebido. A isto chamamos temporalização.
Afirmar que a vida dos junkies é um vazio atemporal constitui uma contradição nos termos. Geralmente destituídos de qualquer capital económico, só podem permanecer junkies se agirem de forma a que o dinheiro de que precisam circule da posse dos não utilizadores para as suas próprias mãos. Imagine-se o que seria pedir dinheiro numa esquina de um bairro residencial, às quatro horas da madrugada. Seria tão bizarro para nós como para um junkie. Não o fazer e, em alternativa, arranjar qualquer outro ?esquema? consiste numa escolha de quem mantém intactas as capacidades para adoptar os comportamentos temporais adequados à sua vida.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa
Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa

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