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Num quero!

Não tinha sido difícil entusiasmá-los com a ideia de recrearmos a conquista da cidade de Lisboa na festa do fim do ano.

? Ó professora, o russo perdeu-se no caminho.
Encolhi os ombros e a conversa acabou ali. No outro lado da sala, cinco ou seis miúdos ia preparando os fatos para os cruzados. A Joana ajudava a prima a fazer a mitra para o bispo. E de vez em quando lá voava mais uma piada sobre o Benfica em direcção ao grupo dos mouros. Eram cinco da tarde de uma quinta-feira de Junho. A festa ia ser no sábado. Andávamos nervosos, atarefados e a trabalhar, há uns dias, fora de horas. Mas o pior já passara. 
Não tinha sido difícil entusiasmá-los com a ideia de recrearmos a conquista da cidade de Lisboa na festa do fim do ano. Ao princípio fora tudo demasiado simples. O Lourenço, quando o acontecimento fora abordado em Meio-Físico e Social, até tinha reinventado o discurso que D. Pedro Pitões, o bispo do Porto, fizera um dia aos cruzados, lá para os lados da Sé, convencendo-os a conquistar Lisboa aos mouros. Um texto que fora trabalhado em grupo e interpretado por vários alunos, até se decidir que o nosso bispo seria a Sónia. Mas as mulheres não podem ser padres. E o que é que isso importa para o teatro? Só faltava uma rapariga a fazer de Afonso Henriques, dizia-se em jeito de provocação e gozo. E porque não? Picava eu. Mas aqui a decisão passou-me ao lado. Um dia, o Júlio comunicou-me que ele é que seria o rei. Como ninguém ripostou, aceitei o veredicto silencioso daquele grupo. O problema maior, contudo, ainda estava para vir. Quem seriam os sitiados ? Quem seriam os onze árabes, responsáveis pela defesa daquele castelo de ripas e papel cenário, a montar em cima do palco ? Eram três os voluntários dispostos a assumir o papel de sarracenos. Mais para me fazerem o jeito, do que seduzidos pelos turbantes vistosos com que eu, ingénua, os tentara convencer. Só pela moeda ao ar é que se conseguiu resolver a questão. Não importava que o Madjer fosse argelino. Pouco interessava, também, que tivessem ficado mudos de espanto na visita ao salão árabe do Palácio da Bolsa. Até no álbum sobre os povos que foram os nossos antepassados na Península Ibérica, lá estava, preto no branco, o elogio ao engenho e à cultura árabes. Podia ver-se o desenho de uma picota, a justificação da importância dos algarismos no mundo de hoje, uma lista de muitas palavras que permanecem ainda na língua portuguesa ou a história em banda desenhada da lenda das amendoeiras em flor. Nada os demoveu.
A escolha do Martim Moniz, no entanto, foi pacífica. A cena do empalamento na porta é que não. Era preciso talento que o actor eleito, de facto, não tinha. Coisa que o rapaz resolveu com imaginação teatral, arranjando, vá-se lá saber aonde, um braço de manequim que, manchado de vermelho, saltava no ar por entre os berros, sem convicção, de uma dor fingida que ganhou alento no dia da festa. Para além da salva de palmas final, ganhou a alcunha que, estranhamente, ainda não tinha: o maneta.

Moral da história:

Assim se vê como muito dificilmente os manuais escolares, e os livros em geral, podem ser os instrumentos primordiais através dos quais aprendemos.
Assim se vê, também, que é possível aprender, igualmente, através dos livros.
Assim se vê, finalmente, como o acto de aprender é um acto que a partir de certo momento nos escapa.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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