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Incomunicabilidade e opacidade nos estados translúcidos

As drogas têm estranhas propriedades e uma delas é a da forma como afectam profundamente a palavra de quem as diz.

Das drogas já quase tudo se disse e quase nada se sabe ? assim poderíamos abrir uma comunicação pública acerca do tema. Teria a vantagem de desculpar de imediato o orador, preparando simultaneamente a plateia para o facto de se ir dizer muito pouco em seguida. Com efeito, as drogas têm estranhas propriedades e uma delas é a da forma como afectam profundamente a palavra de quem as diz, instalando-as desde logo num terreno de mal-entendidos. Quem as consome sente a palavra curta para exprimir a experiência psicoactiva que acaba de viver. Como todo o objecto que convoca estados intensos, relaciona-se pouco com a palavra, encontra-a tosca e exígua e habitua-se a dispensá-la. Assim é que os iniciados às drogas vivem um emaranhado de estados internos e interactivos que convive pouco com os não-iniciados, pois estes só lhe procuram o acesso através da linguagem que descreva e explique ? limitação própria a uma civilização que optou pelo exercício da razão como instrumento de acesso ao que a intriga.
O dispositivo psiquiátrico, incapaz de furar o cerco desta prisão, cataloga através da patologia todo o estado translúcido. Assim, a linguagem está remetida a uma outra revelação: de cada vez que aflora uma palavra, é tomada como signo da perturbação ? o lugar que permite captar, reter e classificar o sintoma. ?O psiquiatra é o amo da loucura: não a conhece, mas domina-a?, escreveu Foucault. Nas drogas, nem isso. O que temos feito com um objecto cuja experiência profunda escapa a um não-iniciado? A sua história está aí para no-lo dizer: reduzimo-lo à sua própria caricatura ? por ex. os estados avançados de dependência ? para lhe codificarmos o lado em que socialmente perturba e moralmente inquieta. Desta perseguição resultou, com o passar das décadas, o fecho do círculo e o aparecimento às claras da profecia que se auto-realiza. A partir daí, a translucidez dos produtos proscritos não poderia senão gerar patologização e estigma. Das drogas, ficámos com a ponta do iceberg dos que se afundam, dos agarrados, dos junkies, dos excluídos. É em torno deles que construímos todo o fenómeno, induzindo-lhe uma representação mediática de sentido único - a do não-sentido da droga. Instrumento que constrói e difunde o estereótipo, a linguagem recupera aqui todo o seu poder. Nas duas últimas décadas, erigimo-lo em torno da heroína, do junkie, da periferia desqualificada, da criminalidade e do sentimento de insegurança. E difundimos o modelo da dependência, como se esta fosse a relação necessária entre indivíduo e droga...
Moral da história (das drogas): escapam a esta visão hegemónica os usos de psicotrópicos em mundos sociais integrados e valorizados, nos indivíduos com capital financeiro e cultural. Estes mundos sociais estão pouco menos do que ausentes na investigação do fenómeno droga, que se tem limitado aos estudos em amostras clínicas e prisionais e à pesquisa conduzida  em grupos e zonas socio-economicamente desfavorecidas ? numa palavra, fazem-se objecto de discurso os sem-poder. Numa investigação recentemente levada a cabo, constatámos que nos estratos de nível social elevado se recorria a uma maior variedade de produtos psicoactivos. A cannabis assumia uma grande importância, sendo uma presença constante em indivíduos com longa trajectória; a cocaína tinha também um papel central, tanto no contexto de meetings privados como enquanto energético para regimes intensos de trabalho; as substâncias alucinogéneas eram alvo de incursões normalmente episódicas, revestindo-se de grande intensidade experiencial à qual não se dava, em geral, continuidade no tempo; a heroína, se bem que por vezes fizesse parte dum passado problemático, era uma droga desvalorizada e com uma imagem extremamente negativa.
Estes estratos sociais são, contudo, resistentes aos esforços de investigação, tendo como consequência a impossibilidade de construção duma imagem do mundo das drogas ampla e completa. Instalados na sua privacidade, opacos social e mediaticamente, usufruem tranquilamente dos prazeres psicotrópicos que escolhem ? enquanto cá fora a populaça, incitada pelos directos das televisões, pede justiça para traficantes e drogados e o poder político promete medidas enérgicas para o lumpen que nos incomoda pelas ruas à cata de mais uma moeda para o vício.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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