Foi presidente da Confederação Portuguesa de Quadros Técnicos e Científicos Portugueses ao longo dos últimos treze anos, tendo abandonado este cargo, há menos de um mês, por considerar que "estava na altura de renovar a direcção". Agostinho Silva, Engenheiro Mecânico formado pelo Instituto Superior Técnico e até ao ano passado director de informática dos CTT, faz nesta entrevista - realizada uns dias antes da sua sucessão - o balanço das actividades da confederação ao longo do seu mandato e analisa a actual situação dos quadros técnicos e científicos em Portugal, criticando a falta de "estratégia" e de "diálogo" dos gestores portugueses.
Em que contexto foi criada a Confederação Portuguesa de Quadros Técnicos e Científicos? A Confederação é uma ideia que nasce com o primeiro encontro nacional de quadros portugueses, realizado em Maio de 1988, ele próprio uma necessidade sentida há muito por um grande número de profissionais. Uma das conclusões retiradas desse encontro mostrava que em Portugal existia na altura um elevado número de quadros não sindicalizado, por não encontrarem nas organizações sindicais uma alternativa que os satisfizesse, uma entidade que fosse capaz de abordar transversalmente os problemas dos quadros técnicos e científicos. Embora se deva reconhecer que foi difícil ultrapassar alguns obstáculos próprios de um país com uma forte cultura corporativa, num certo sentido a confederação conseguiu atingir esses objectivos.
A confederação funciona como uma organização sindical ou mais como um conselho? A confederação é uma organização sindical, embora, à semelhança de todas as organizações sindicais com características semelhantes, não intervindo directamente em negociações. Apesar de ter havido uma tentativa de aproximação ao Conselho de Concertação Social, foi muito difícil obter espaço para uma organização relativamente pequena face à influência de centrais sindicais como a CGTP e a UGT. Mas não temos como objectivo negociar. O nosso esforço passa por apoiar os sindicatos associados a encontrar linhas de actuação comuns, levando para a mesa das negociações questões que tradicionalmente não são abordadas, como é o caso da formação profissional, uma questão fulcral para este país. Este será talvez o exemplo mais flagrante, porque é uma área onde as carências são por demais evidentes. Como exemplo, refira-se que não há praticamente nenhum acordo colectivo de trabalho que contemple um plano de formação profissional objectivo e prático. O que existe está no papel, mas não surte efeito. Esta questão é tão mais central se pensarmos que a actualização de saberes assume hoje uma importância sem precedentes. Se até há uns anos ainda se tinha a ilusão de poder passar-se vários anos sem qualquer actualização profissional, hoje em dia isso é impossível. E se não formos capazes de fazer com que apareçam compromissos sérios nesse sentido Portugal vai continuar a ter quadros sem formação adequada aos desafios do futuro. Outra das questões a abordar no congresso será a revisão da Carta de Direitos e Garantias dos Quadros Portugueses, que constituiu um instrumento importante para melhorar a qualidade da nossa intervenção, marcada essencialmente, como já referi, pelo estatuto de observador.
Que temas vão ser abordados em congresso? O tema do congresso poderá, à partida, parecer um pouco agressivo - e inclusivamente gerou-se uma discussão interna relativamente a essa questão -, mas resume bem as preocupações da confederação: "Mais emprego, menos precaridade, mais desenvolvimento". De forma a obtermos um retrato actual das expectativas dos quadros portugueses, realizamos um inquérito, a ser apresentado neste encontro, onde pedimos aos inquiridos que fizessem uma apreciação da sua situação profissional e sindical, questionando-os, nomeadamente, sobre se os sindicatos estão ou não a cumprir o seu papel e o que devem fazer para melhorar a sua prestação. Um dos dados curiosos retirados deste estudo, e comparando os resultados actuais com os de um trabalho de natureza semelhante realizado há oito anos, permite-nos perceber que a principal preocupação dos quadros portugueses é hoje a instabilidade do emprego, ao contrário das questões salariais referidas há uma década. Esta preocupação pode resultar do facto de se ter registado uma forte participação dos professores no inquérito - indício de que a classe vive uma situação particularmente grave -, mas estende-se, de uma forma geral, aos restantes participantes. Devo dizer, aliás, que os professores tiveram uma participação maioritária neste trabalho - e o Sindicato dos Professores do Norte foi quem mais contribuíu para esse resultado expressivo. No entanto, o inquérito foi baseado exclusivamente numa amostra de quadros sindicalizados, o que não nos permitiu obter uma leitura mais representativa. Nesse sentido, estamos a pensar em pedir um esforço aos sindicatos do sector no sentido de nos ajudarem a completar a amostra e obter resultados com uma margem de erro aceitável, inferior a quatro por cento. Outra das conclusões interessantes retiradas deste inquérito é que, ao contrário do que possa pensar-se, a precaridade de emprego ao nível dos quadros é maior nas empresas públicas do que nas empresas privadas. Esta ainda não é uma conclusão definitiva, já que o número de respostas por parte de quadros do sector privado é diminuta, mas parece constituir uma tendência bastante clara.
Este vai ser o último congresso com o Agostinho Silva na presidência da confederação. Decidiu que era tempo de passar o testemunho? Sim. A actual direcção vai propôr uma lista de candidatura, na qual colaborei o mais activamente que pude, para a constituição de uma nova direcção. Entendo que a minha saída resulta de uma necessidade de renovação e julgo que os motivos para a minha saída foram compreendidos pelos elementos da confederação. Quero continuar a dar o meu contributo mas não enquanto membro da direcção. É um processo de renovação que, na minha opinião, deverá conservar um núcleo forte, activo, que transite da direcção anterior, apostando, ao mesmo tempo, na entrada de novos elementos. Substituir uma direcção de uma assentada é tão mau como manter as mesmas pessoas indefinidamente. E estou convicto de que esta direcção sairá fortalecida em relação à anterior.
Os quadros em Portugal e na Europa
Qual é a taxa de colocação de quadros em Portugal por comparação à média europeia? A percentagem de quadros superiores em Portugal é ainda muito baixa se a comparamos com a dos países europeus e outros tecnologicamente e economicamente mais fortes (se são ou não mais desenvolvidos isso é uma questão discutível...). Devo referir que o conceito de quadro não é igual em todos os países. Em Portugal designa-se habitualmente por quadro um profissional licenciado; em França usa-se também a expressão "cadre", mas mais para designar um cargo de chefia; já na língua inglesa, por exemplo, não existe qualquer designação equivalente. Além disso, vai-se verificando um esbatimento progressivo entre estas carreiras e as carreiras altamente qualificadas, entre os quadros superiores e os quadros intermédios. Os quadros intermédios têm tendência a desaparecer das empresas, já que há uma polarização dos dois sistemas, resultado sobretudo da evolução tecnológica, que dispensa, de forma crescente, os patamares intermédios na monitorização dos processos.
Tem alguma ideia de qual poderá ser essa percentagem? Os números que temos não são totalmente fiáveis porque, tal como já referi, o próprio conceito de quadro não se enquadra nas estatísticas. Mas na nossa opinião esse número deverá situar-se entre os quinze e os vinte por cento do total da população activa. Em países mais desenvolvidos essa percentagem atinge os trinta por cento. Apesar de se ter verificado uma evolução sem precedentes do número de quadros presentes no mercado de trabalho, assiste-se, desde há cinco ou seis anos, a um ligeiro decréscimo do número de saídas profissionais de nível superior, com o número de pessoas formadas para o desemprego ou colocada em empregos que não correspondem às suas habilitações a aumentar progressivamente.
Em que medida varia essa percentagem entre o sector público e o sector privado? Não detectamos, através do nosso trabalho, referências suficientes que possam clarificar essa diferença. Mas um dado é certo: no sector privado os vínculos contratuais dos quadros são mais estáveis, ao contrário do que acontece com os restantes trabalhadores.
Não pensa que a discrepância de salários entre quadros e trabalhadores de base é demasiado alta? Sim. E essa discrepância é muito maior em Portugal do que noutros países, inclusivamente os mais desenvolvidos. O salário mínimo nacional, por exemplo, é um terço ou um quarto do praticado em França, mas o presidente de uma empresa como os Correios recebe mais ou menos o equivalente ao seu congénere português.
Acha que se justifica o pagamento de valores tão elevados? Essa discrepância não contribuirá para enfraquecer a relação entre chefias e trabalhadores? Esse é mais um dos problemas culturais do nosso país. Em Portugal considera-se que os decisores devem ser muito bem remunerados, mas essa opção não justifica o pagamento de salários tão elevados... E vai chegar-se a uma altura em que não será possível manter essa situação. E estou de acordo consigo quando diz que esta discrepância é mais uma barreira entre quem gere e quem é gerido. Quando se pede poupança nas contas habitualmente essa medida destina-se apenas a alguns. No nosso país não existe uma cultura de gestão que entenda que para conseguir empenho por parte dos outros é preciso dar o exemplo, que parte, nomeadamente, do comportamento do dia-a-dia, muitas vezes de coisas aparentemente simples, como a forma de ganhar e de gastar o dinheiro...
Há pouco pedi-lhe para comparar a percentagem do número de quadros em Portugal e nos países da UE. No próximo ano dez países da Europa de leste irão tornar-se membros de pleno direito da União. Qual é a presença de quadros nos países de leste e que efeitos poderá trazer a países periféricos como Portugal? Não conheço com exactidão o contexto desses países para adiantar um número. Os países de leste tinham um modelo educativo que não pode ser directamente comparado com o nosso, mas o facto é que ainda hoje retiram alguns benefícios desse sistema educativo. São países com uma taxa de alfabetização perto dos cem por cento, uma formação técnica elevada e uma grande taxa de licenciados. A abertura dos países da UE a leste vai certamente gerar algum impacto, principalmente em países como Portugal, que pode estar num patamar de desenvolvimento ligeiramente superior mas possui um baixo nível de formação geral da população.
Produtividade versus gestão
Onde é que Portugal regista a sua principal debilidade? Não tenho pretensão de ter uma resposta qualificada para essa questão, mas vamo-nos confrontando com sinais negativos que nos mostram que este, certamente, não é o caminho... Um desses sinais prende-se com a forma como abordamos a gestão e a participação na gestão. E se me refiro mais concretamente ao papel dos quadros, poderia referir-me também ao dos trabalhadores qualificados em geral. Quer no sector público quer no sector privado verificamos que, em geral, as administrações têm receio de ser confrontadas com a energia criativa das pessoas. Em vez de serem chamadas a participar - diria quase a protestar, se for caso disso -, as pessoas habitualmente limitam-se a fazer o que lhes mandam. Aqui há uns anos foi publicado um livro, chamado Em Busca da Excelência, que abordava os casos de historiais de sucesso prolongado de algumas empresas americanas e onde se percebia que o factor que as diferenciava era o modelo de gestão, de preservação e de desenvolvimento do conhecimento. Ora não é possível desenvolver o capital de conhecimento de uma empresa amordaçando as pessoas... É necessário haver elementos que tomem iniciativas, mesmo contra a opinião dos gestores, que pensem, que criem... São estas pessoas fazem falta em Portugal. Na minha opinião, um dos primeiros passos para inverter este marasmo seria criar condições para que os quadros qualificados pudessem ter uma intervenção mais activa, e isso passa por negociar estratégias com as pessoas. E esta prática não existe no nosso país, ninguém fala com ninguém.
Não pensa que esta questão à volta da produtividade nacional estará a ser abordada de uma forma um tanto ou quanto demagógica, isto é, com a tónica posta exclusivamente na produtividade dos trabalhadores e não no processo organizativo e na gestão dos recursos? Sim, e a confederação de quadros já denunciou isso mesmo, engrossando o coro de protestos que continuam a afirmar que a produtividade não está directamente relacionada com as leis do trabalho. A lei não altera o nosso principal ponto fraco que é a fraca capacidade de gestão e de visão estratégica dos gestores e dos governantes no sentido de aproveitarem as potencialidades do país. Essa falta de estratégia é visível, nomeadamente, na formação profissional, que os trabalhadores têm praticamente de andar a mendigar... Quanto mais não seja por uma questão de inteligência, os gestores deveriam dar mais importância ao diálogo e à negociação com os trabalhadores.
Uma das questões mais abordadas recentemente tem sido a progressão por mérito na administração pública. Qual é a vossa opinião nesta matéria? A Confederação de Quadros não defende a instauração de uma meritocracia, embora concorde que ele seja melhor do que uma autocracia. Mas sabemos que a avaliação do mérito pode, por vezes, ter contornos desviantes, como é o caso dos rankings das escolas, que por alguma razão tem sido contestada. Avaliar a qualidade de uma escola com base nos resultados dos exames é algo que não só é injusto como ineficaz. A questão do mérito é, apesar de tudo, um mal menor. A avaliação global das escolas deve ser feito, mas partindo de um modelo que permita fazer isso de uma forma justa, acordada entre as partes. Numa empresa também é possível avaliar o mérito com base numa avaliação objectiva, mas partindo de um plano de trabalho previamente negociado entre as partes - e sublinho a palavra negociado. Porém, não há nenhum método perfeito. A minha experiência de gestor diz-me que esta é uma abordagem difícil, porque há sempre quem fique descontente. mas um modelo que não seja aceite por ambas as partes é bom.
O ensino superior irá atravessar mudanças significativas na europa, consequência nomeadamente do actual processo de convergência para o sector e da proposta americana na Organização Mundial de Comércio de mercadorização dos serviços educativos a nível mundial. Não se estará a potenciar um mercado educativo orientado para actividades comerciais lucrativas, provocando uma descida do nível geral da qualidade do ensino? Existe uma proposta para as licenciaturas se limitarem a três anos... Devemos questionar-nos sobre o que significa ser mais ou menos especializado e se isso estará ou não relacionado com a qualidade do ensino. Quando entrei para os CTT o tempo médio de formação de um funcionário era de meio ano; nos últimos anos durava um mês e meio; hoje, recorrendo a ferramentas informáticas, o tempo dispendido na formação não ultrapassa uma semana. Quererá isso dizer que estes funcionários são menos especializados? Não necessariamente, porque para adquirirem estas competências em apenas uma semana precisaram de ter uma formação de base mais completa e actualizada do que os seus antecessores. Quanto à padronização nivelada pelo baixo, como refere, é um esforço que os grandes deste mundo estão a tentar impôr para formar uma barreira maior entre a massa e a excelência, que cada vez mais vai estar apenas ao alcance de poucos. Nos Estados Unidos as melhores universidades são inatingíveis para a larga maioria das pessoas e já se fundem com as empresas de uma forma que em Portugal ainda nem se sonha... E essa é uma tendência inevitável.
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