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Origens e funções do Quasinglês

Precisamos das línguas para tudo (de todas as línguas vernáculas e não apenas de algumas) porque todas elas nos atestam que a humanidade é una e múltipla no que toca a pensar o universo com as ferramentas intelectuais que precederam as da ciência? que, de resto, não existiria sem elas.
Mais, em domínios como a política, a educação, a religião e os costumes, onde só muito esporádicamente e a muito custo o escalpelo da ciência consegue penetrar a fundo para cortar os nós cegos das ideologias antagónicas que neles campeiam, a única protecção que temos contra o rolo compressor do pensamento único e as mistificações planeadas, assenta na integridade dos vernáculos que falamos em cada país.  
Acontece que há, hoje em dia, muita gente em Portugal que pratica, seja por inadvertência ou por cálculo, o exercício, nada inocente, que consiste em falar e escrever como se o idioma português fosse aquela pedra com o que o frade espertalhão do conto popular cozinhava as suas sopas à custa do alheio. Os resultados são dignos de registo, mais que não seja porque revelam o estado da nação num domínio em que poucos parecem reparar (ou, nele reparando, o achem apenas risível). Mas ver-se-á mais adiante que o caso não se reduz a um motivo de chacota; tem uma dimensão política global. Antes, porém, de aí chegarmos, eis alguns exemplos.

Em Quasinglês soa mais fino e mais caro

Atente-se nos títulos de certos condomínios: ?Atlantic Park de Chelas, Pacific Ocean  da Estrada de Benfica, Hawaiian Paradise das Laranjeiras, e, em breve, espera-se, as Coconut Towers da Falagueira. Em Inglês soa mais fino e mais caro?. (Clara Ferreira Alves. Expresso. 18.01.03). Aos novos ricos, claro está. Parece, no entanto, que de novo rico todos temos um pouco, cá por estas bandas. Segundo um estudo promovido pela Nokia, Portugal é o 2º país europeu com maior percentagem de penetração de telemóveis, à frente da própria Finlândia, o país onde são fabricados os Nokia. Estamos perto dos 100%. Só os italianos nos batem neste tipo de consumo. Mas a publicidade dos telemóveis, essa, é do mesmo estilo pato-bravo dos títulos dos condomínios. Coisas assim: Nokia: ?Connecting people?. Vodafone: ?How are you? Vodafone Live! Agora é o momento?. Siemens: ?Cada um tem o som que merece. Grave-o. Be inspired?. TMN: ?Big smile cool= a ti≠ dos outros. O telemóvel que te permite ordenar os itens do menu, escolher o teu screensaver animado e mixar melodias pré-definidas juntando efeitos aos instrumentos?. Os seus autores podem reivindicar, dado o volume de vendas, que é exactamente com esse tipo de parlapié que se atingem tais miríficos resultados.
Em 2001 registaram-se cerca de 600 mil sinistros automóveis em Portugal, ou seja, uma média de 1600 acidentes por dia. Os acidentes que provocaram mortos e feridos graves ascenderam a 60 mil, com a morte de 1520 pessoas. Os peões representaram 19% destas mortes ? a terceira  mais alta taxa da Europa ? atingindo sobretudo crianças e idosos. Mas alegremo-nos. Cerca de 14 mil jovens aderiram ao cartão ?100% Cool", lançado em Outubro de 2002 pela Associação Nacional de Bebidas Espirituosas. ?A campanha ?100% Cool? visa levar os jovens a designar, sempre que saiam para diversão, um do próprio grupo que não beba para conduzir o carro em segurança?. (Expresso.14.12.02) Assim, deduz-se, basta um jovem 100% sóbrio ? perdão ?100% Cool? ? para levar uma carrada de outros 100% bêbados, desculpem, ?drunkards?.

Em Quasinglês soa mais inteligente e profundo

A Academia Militar oferece uma pós-graduação em ?guerra de informação/ competitive intelligence?, para o seu ano lectivo de 2002/2003. (Expresso de 4.01.03). O tema de estudo parece uma charada. Mas só se julgarmos que "competitive intelligence" é um dos modos possiveis de designar, em Inglês, aquela variável intelectual que acompanhou o crescimento evolutivo do cérebro dos nossos remotos antepassados (de 600 cm3 no Homo Habilis, há cerca de 2 milhões de anos, para 900 cm3 nos primeiros Homo Erectus, 300 mil anos mais tarde, e para 1500 cm3, em média, no Homo Sapiens, a nossa gente) e que nos permitiu sobreviver até hoje. Em Quasinglês, porém, significa apenas exercitar a propaganda e contra-propaganda.
Mas o caso mais impressionante é o da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que vai realizar, de 14 de Fevereiro a 24 de Maio 2003, o seu 5º curso de Direitos Humanos e Democratização. Na mais velha universidade portuguesa, os módulos a leccionar nesse curso serão todos (com excepção de "Le droit à l?éducation") na mesma língua que soa a música das esferas aos ouvidos da Associação Nacional de Bebidas Espirituosas, dos promotores imobiliários e dos vendedores de telemóveis: "Introduction to Human Rights. National and international mechanisms of protection. Democracy and rights of political participation. Women?s human rights. East Timor. Feedom of expression. Human Rights and international politics. Inclusiveness and multiculturalism. The right to environment and the right to sustainable development. Children?s Rights. Current human rights issues."

A gerência agradece

Quando tanta gente se prostra perante o Quasinglês e até mesmo vetustas instituições escolares lhe entregam as chaves de casa, o sinal de alarme deve soar. O cúmulo de provas não deixa escolha. Todas elas se resumem neste facto, quase sempre passado em silêncio, mas assinalado num livro escrito em 1990 (?Os Novos Poderes?, Alvin Toffler): ?A primeira enorme vantagem de que os Estados Unidos da América desfrutam, neste momento, é, simplesmente, a sua língua. O Inglês é a língua mundial na ciência, no comércio e na aviação internacionais, além de dezenas de outros domínios. (?) O facto de centenas  de milhões de seres humanos compreenderem pelo menos um pouco de Inglês dá uma poderosa vantagem mundial às ideias, estilos, inventos, e produtos americanos?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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