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Buli Sané

Éramos gente comum que, naquele contexto, se defrontava com um desafio incontornável, o de enfrentar os exames finais da responsabilidade de alguns técnicos zelosos que o próprio Ministério mandatara para o efeito. Um desafio que se ia tornando cada vez mais angustiante à medida que o ano avançava, obrigando-nos a constatar que o sentido daquele empreendimento dependia menos do sentido e do significado das aprendizagens realizadas do que da aprovação que se obtinha, ou não, numa prova derradeira e decisiva.

Tínhamos trabalhado, noite após noite, a prepararmo-nos para aquele dia. O quadro negro no alpendre, os paus de giz nas mãos e as quatro ou cinco garrafas de Cicer, com pavios acesos mergulhados em petróleo, a iluminar em círculo a escuridão de Nhala. As contas de dividir eram o seu ponto fraco, as operações que incluíssem fracções, por vezes, confundiam-no e a leitura dos números decimais nem sempre era tão bem sucedida como seria desejável. Para piorar as coisas, as relações com o Júlio, o professor de Matemática, não eram, na altura, as melhores. Situação que acabou por justificar a minha subtil entrada em cena, como responsável por um dos grupos de alunos que necessitava de apoio pedagógico acrescido nessa disciplina. Buli Sané estava, obviamente, incluído nesse grupo.
Era um dos muitos alunos daquela escola-internato que o Ministério da Saúde da Guiné-Bissau tutelava. Homens e mulheres que, como socorristas, tinham sido combatentes do PAIGC durante a guerra colonial e que agora se preparavam, ali, para ingressarem na escola de enfermagem de Bolama. Vivi e trabalhei com eles durante um ano. Um ano intenso e único, difícil, numa escola diferente que se caracterizava mais pela amplitude e a diversidade dos momentos de encontro, pela partilha de um projecto que entendíamos como comum, do que propriamente pela excelência das nossas práticas pedagógicas ou tão pouco pelos resultados académicos brilhantes obtidos por aqueles alunos. Éramos gente comum que, naquele contexto, se defrontava com um desafio incontornável, o de enfrentar os exames finais da responsabilidade de alguns técnicos zelosos que o próprio Ministério mandatara para o efeito. Um desafio que se ia tornando cada vez mais angustiante à medida que o ano avançava, obrigando-nos a constatar que o sentido daquele empreendimento dependia menos do sentido e do significado das aprendizagens realizadas do que da aprovação que se obtinha, ou não, numa prova derradeira e decisiva. O afastamento das famílias, que a escassez de dinheiro e de transportes não permitia visitar ao longo do ano, os muitos dias do arroz com arroz ou o cansaço das aulas que o peso dos anos agravava não seriam espantados, desta vez, com a resignação de um Djitu ka tem, se à frente do nome, na pauta, o indesejável veredicto estivesse anunciado a vermelho.
E o dia do exame oral chegou. Ouvi o examinador chamar pelo nome de Buli Sané. O mesmo Buli Sané inquieto que, na noite anterior, me confessava o medo que o assolava quando era obrigado a enfrentar o algoritmo de uma divisão. Vi-o sentar-se, responder às primeiras questões e ler os números que o professor tinha escrito no quadro. Quando se levantou para resolver uma conta de dividir com três cruéis algarismos no divisor levantei-me e foi já encostado à parede, no fundo da sala, que, a pouco e pouco, fui reconhecendo todos os passos e os truques que havíamos meticulosamente ensaiado nas semanas anteriores. Nem a maldita prova dos nove fora dispensada da exibição daquele burocrata investido do poder de examinar. Agora no entanto só faltava ditar o problema. Ditou-o à velocidade da escrita que o Buli imprimia ao giz traçando as letras no quadro. Até se fazer silêncio. Um silêncio longo que, mesmo sem a gravata de elástico do meu exame da 4ª classe, me esganava o pescoço naquela manhã equatorial desse Julho de 82. Cumprindo o guião estipulado, vi-o sublinhar correctamente, no enunciado do problema, a informação relevante e, no lado esquerdo superior do quadro, enunciar a operação aritmética que tinha que resolver para responder à questão que lhe era colocada. Mais uma divisão que ele resolveu a preceito  no lado direito do espaço que lhe restava. Faltava a resposta, por escrito, que não tardou. Sem um erro, longa, formal e completa.
O abraço longo e festivo que nos uniu no terreiro da escola é o último gesto dele que a minha memória conserva. Um gesto que, hoje sei, explica muitos outros gestos. Um gesto que, também sei, muitos outros professores poderiam evocar como seu.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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