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Entre a teoria e a prática...

«Se conseguirmos ser professores intermulticulturais, talvez não venhamos a ser, (...) pois não podemos esquecer que as pessoas que nos julgam hoje são fruto de uma escola ditatorial, onde o saber ler, escrever e contar, as ditas pedagogias visíveis, é que eram valorizadas e contestam de alguma forma as pedagogias invisíveis que tentamos implantar actualmente nas escolas?».

Assim escrevia uma aluna do 2º ano, numa reflexão sobre o contributo da Sociologia da Educação para a sua formação, enquanto futura professora do 1ºCEB. Tal fez-me retomar a ideia de que o Ensino Superior, por razões várias, escapa a quase todas as teorias educacionais, não sendo por isso passível de se lhe aplicar grande parte dos ensinamentos da Sociologia da Educação.
Assim, julgava eu, acontecia com a questão da interculturalidade! Até porque, do meu ponto de vista, a filtragem feita no Ensino Básico e mesmo no Secundário faria com que os alunos presentes na sala de aula fossem relativamente homogéneos.
Mais  uma vez, grande daltonismo cultural da minha parte! Em primeiro lugar, a massificação parece ter atingido os níveis mais altos de ensino, simplesmente pela extensão da escolaridade obrigatória e consequente decréscimo do número de retenções, pelo menos até ao 9º ano de escolaridade. A filtragem é portanto hoje bem diferente da de há alguns anos atrás. Por outro lado, as licenciaturas para o ensino não registam médias de acesso particularmente altas. Assim, temos ?bons? alunos do secundário a frequentar esta escola porque fica perto de casa e temos ?maus? alunos que não conseguiram entrar na Universidade e por isso foram parar ao Politécnico. O cenário pode ser demasiado linear, mas demonstra que a excelência escolar, com todas as determinações sociais e culturais que o conceito carrega, não é um filtro tão ?eficiente? quanto eu pensava e que, portanto, a realidade é bastante mais heterogénea do que eu acreditava.
Neste sentido, parece-me estar na altura de percebermos que a prática de uma educação intercultural deve passar a figurar entre as  preocupações de um Ensino Superior que se quer, também ele, promotor de igualdades de sucesso. No caso concreto de uma escola de formação de professores, esta preocupação deve ser redobrada já que a frequente discrepância entre o que aqueles alunos ouvem e aquilo a que assistem só deixa aparentemente duas hipóteses: ou passam a pensar como eu pensava e entendem que o Ensino Superior é uma realidade a que não se aplica nenhum princípio educacional e esperam por ser professores para pôr em prática o que ouviram durante quatro anos; ou, então, concluem que uma coisa é o que o professor diz e outra é o que o professor. Neste caso, quando tiverem a seu cargo uma turma, longe do olhar avaliador dos professores, enveredarão possivelmente também eles pela via da monoculturalidade.
Por outro lado, este é um problema que não se põe só ao nível das aulas mais ou menos teóricas a que, de facto, me parece aplicar-se o velho ditado do ?faz o que eu digo não faças o que eu faço!?, mas, também a julgar pelos ecos que nos chegam por parte dos alunos, se estende às práticas pedagógicas. É que, muitas vezes, os modelos que lhes são apresentados na prática correspondem ao professor monocultural, ao que acresce que nem sempre lhes é deixada margem suficiente de manobra para, nas suas actuações, porem em prática aquilo em que acreditam, gerando-se mesmo algumas situações de conflito entre as orientações dadas pelo professor cooperante e pelo professor supervisor.
Pois bem, eu acredito que, com todas estas dificuldades, algo fica nos alunos quando são sensibilizados para estas questões e que, nesse sentido, talvez um dia, quando as dificuldades da profissão docente começarem a surgir, se lembrem destes ensinamentos e comecem a olhar a profissão de outra forma, levando a cabo uma prática pedagógica mais reflexiva e enformada por preocupações interculturais. Afinal de contas estamos a actuar ao nível da formação pessoal, sobre valores e atitudes que estruturam a própria identidade, profissional mas também pessoal.
Assim se explica, em meu entender, o reconhecimento no currículo de áreas disciplinares como a Sociologia e a Antropologia enquanto saberes relevantes para a formação de professores, as quais, pela compreensão da complexidade da realidade social que viabilizam, estarão em condições de contribuir para a formação do professor reflexivo, actuando ao nível do saber ser.


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Susana Faria
Escola Superior de Educação de Leiria
Susana Faria
Escola Superior de Educação de Leiria

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