Página  >  Edições  >  N.º 120  >  A Educação não é um ramo da Economia: contribuição para um manifesto contra o discurso fácil e a demagogia

A Educação não é um ramo da Economia: contribuição para um manifesto contra o discurso fácil e a demagogia

A sociedade portuguesa viu instalar-se  nos derradeiros anos, de forma progressivamente acentuada, um discurso negativo sobre os seus recursos e capacidades. É, de certo modo, o retorno cíclico ao espirito do ?Velho do Restelo?.
Esse discurso descrente e desencantado tem intérpretes em múltiplos sectores da sociedade e níveis de decisão económica e política, mas parece ter penetrado mais fundo no sector da educação, incluindo o ensino superior. Curiosamente, ou talvez não, os estudantes e os seus representantes associativos encontram-se entre os maiores arautos  dessa mensagem, quase lenga-lenga. A rivalizar com eles sugere-se só o discurso governamental, falho de convicção, falho de estratégia e amarrado a grupos de interesses que não vêem no ensino e formação senão o negócio.
São pedras de toque da mensagem da desgraça, especialmente:

  1. a suposta degradação da qualidade do ensino superior oferecido (com ênfase maior no ensino público);
  2. a perda de pertinência da formação ministrada face às solicitações do mercado de trabalho (vulgo empresas);
  3. a culpabilização dos professores e da autonomia das instituições pela proliferação de cursos que não oferecem perspectivas de saída profissional aos seus diplomados.

Colocadas num contexto geral de reflexão sobre a evolução e futuro da formação graduada e pós-graduada, estas questões têm merecido a atenção de diversas instâncias nacionais e internacionais, não sendo difícil invocar documentos onde as problemáticas de fundo que lhe subjazem são convenientemente dilucidadas. Para reter um desses documentos apenas, menciono aqui o relatório da UNESCO sobre ?Higher Education in the Twenty-first Century: Challenges and Tasks Viewed in the Light of the Regional Conferences? (Word Conference on Higher Education, Paris, Outubro de 1998).
Recomendando vivamente aos interessados em aprofundar a problemática a leitura do citado documento, de forma necessariamente breve e sumária não queria deixar de dar aqui o meu testemunho sobre as questões mencionadas.

  1. Há quem pretenda confundir Educação e Economia. Conforme o sublinha o documento da UNESCO já identificado, ?a Educação não é um ramo da Economia, nem o processo educativo, os seus propósitos últimos ou os seus resultados ou ?produção? são comparáveis aos da Economia? (UNESCO, 1998, p.3). E continua, é, antes, ?um sector essencial da sociedade e uma condição da existência social?
    Naturalmente que a formação universitária deverá também formar técnicos, que sirvam as empresas, que sirvam as organizações, que sirvam a sociedade. Mas são, deverão ser, as licenciaturas assimiladas simplesmente a cursos de formação profissional? E porquê então subsistem sistemas de ensino universitário, politécnico, de formação profissional, de graduação e de pós-graduação?
    Obviamente que a sociedade do presente, a sociedade do conhecimento, e o ritmo das rupturas tecnológicas e organizacionais impõem um outro projecto de universidade e um outro modelo de parceria entre a universidade e a economia. Isto porque o conhecimento cria-se, crescentemente, através da acção e uma nova partilha de tarefas se institui entre investigação fundamental, investigação aplicada, inovação e transferência, e porque, nesse contexto (que só parcialmente é ainda o do presente), a formação não estará mais a montante da investigação. Mas quem é que em Portugal já encarou seriamente isso? Que políticas activas estão esboçadas para aproximar o presente do futuro?
  2. É recorrente o discurso culpabilizando os professores e a gestão universitária pública pela frustação dos estudantes em matéria de saídas profissionais, e, antes disso, a nível de sucesso escolar. Isso tem servido de pretexto para atingir fortemente a autonomia das instituições de ensino público consagrada nas leis que a essa matéria se referem, publicadas nos anos 80. Nesta vertente, convergem o discurso dos estudantes, de alguns sectores empresariais e o dos governos (o presente e os anteriores, de iniciativa do PS, particularmente).
    O discurso é de tal modo desqualificado e demagógico que se emaranha nas suas próprias contradições. Brevemente, para sublinhar algumas dessas contradições, deixemos algumas (poucas) perguntas de resposta óbvia: i) quem viabilizou o estatuto que permitiu a inumeras instituições privadas operar como instituições de ensino superior e quem autorizou o funcionamento dos respectivos cursos? ii) Quem regula as condições de acesso ao ensino superior e define os contingentes de alunos que ingressam no sistema público? Quem é que, enfeudado a um discurso moralista, veio proclamar a necessidade de regular a criação de cursos superiores (no sistema público e privado) quando o mercado já dispensava essa intervenção reguladora?
    As considerações que antes deixo e, especialmente, as perguntas que formulo dão conta da complexidade do que está em causa nas políticas de ensino superior em Portugal. Antes disso, porém, pretendem sublinhar que não é matéria onde o discurso fácil e a demagogia devam ser incentivados, exactamente em razão da relevância estratégica do ensino e da formação para o evoluir da nossa economia e para o desenvolvimento da nossa sociedade. Infelizmente, o que se tem visto em Portugal em período recente é o rigoroso contraponto do ponto de vista que aqui enuncio.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

J. Cadima Ribeiro
Economista, Professor da Escola de Economia e Gestão da Univ. do Minho
J. Cadima Ribeiro
Economista, Professor da Escola de Economia e Gestão da Univ. do Minho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo