Página  >  Edições  >  N.º 120  >  A propósito da Filosofia

A propósito da Filosofia

A propósito da proposta de terminar com a disciplina de Filosofia no 12º ano diz Manuel Sérgio: "não acredito que os próprios problemas possam compreender-se sem formação filosófica. Um ensino apenas científico deixará os jovens sem recursos críticos para enfrentar a vida".

Foi há trinta anos atrás. Em Madrid. Deambulava eu pelas ruas, com o febril desejo de encontrar uma livraria. Chegara-se aos fins de Abril e a primavera deixava cair sobre a cidade a benção suave de uma carícia tépida. Até que (recordo-me bem), à beira do Palácio do Oriente, encontro uma pacata livraria, onde entrei guloso das últimas novidades literárias. Açodado pela presença de um cliente, um velho enérgico aproxima-se de mim e pergunta-me: ?Em que posso ser útil??. Apressei-me a dizer que eu mesmo escolheria, sem ajuda, o livro que me interessava. E ele, encomiando com sinceridade: ?Já leu Humanisme et Terreur? É uma obra prima?. Naquela altura, da escola fenomenológica eu só lera a Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental de Edmond Husserl. E, por isso, sem hesitações, encaminhei-me para a estante de onde o Merleau-Ponty me chamava. Comprei o livro, com desenvoltura, e sentei-me num ?café? a auscultar o fervor combativo do grande filósofo. Retenho este parágrafo: ?A supressão da filosofia é sempre historicamente errada. A filosofia será ultrapassada quando o ser humano deixar de ter crises, enigmas, dificuldades, para além de todas as descobertas científicas. Digo mais: não acredito que os próprios problemas possam compreender-se sem formação filosófica. Um ensino apenas científico deixará os jovens sem recursos críticos para enfrentar a vida?.
De facto, o altruismo de uma humanidade fraterna e lúcida, que abdicasse do seu individualismo feroz em prol dos grandes interesses colectivos, precisaria sempre da reflexão filosófica. Pode-se passar, durante algum tempo, sem pão, mas é muito difícil viver um minuto sem esperança. Não sei se assim pensam os actuais ?positivistas? (e portanto bolorentas e bafientas pessoas) do Ministério da Educação que afirmam ser a filosofia um saber perfeitamente dispensável. É evidente que a filosofia não tenta provar nada, nem apropriar-se intelectualmente de um campo empírico. Ela nada tem a provar... a não ser que não pode haver cultura (no sentido global do termo) apenas na e pela ciência! A filosofia é mais uma lição de consciência do que de ciência ? no entanto, lição preciosa para que nenhum saber se julgue absoluto, acabado, completo. A própria investigação científica é tributária de uma visão do Homem, da Vida, da Sociedade, da História ? que é filosófica, indubitavelmente. O Ministério da Educação pretende impor um saber racional e objectivo, estreitamente vinculado à ausência de contradição. Ora, os filósofos sabem que a escassez de contestação criadora a qualquer poder político e corporativo e de questionamento ao saber instituído e institucionalizado conduz inevitavelmente a ditaduras de todos os matizes. Quando a filosofia se cala ou, por timidez, abaixa a sua voz, cede a palavra a outro discurso: o violento e o despótico! Filosofar equivale a elaborar uma crítica permanente das super-estruturas rígidas, inteiriças, que paralisam e dificultam a liberdade criadora das ?ciências vigilantes?.
Daí o receio da filosofia (e até da epistemologia), por parte dos que pretendem transformar em doutrina o seu pequenino saber, os seus pequeninos ódios, as suas pequeninas ambições. Já senti o rancor de fariseus puritanos desembestar em fúria brava, quando quis trazer à tona os pressupostos filosóficos da motricidade humana em geral e do desporto em particular. Sem o saberem, eles faziam (fazem) suas as velhas palavras de Max Plank, em L?Image du monde dans la physique contemporaine: ?O positivismo não deixa qualquer lugar à metafísica? (p.98). No entanto, depois de  Gaston Bachelard e de Thomas Kuhn o pensamento científico deverá conceber-se como uma dialéctica permanente com o mundo psico-social. Foi Popper a sublinhá-lo: a preocupação de um cientista honesto não deve residir na cega sustentação da sua teoria, mas na procura sincera e corajosa dos seus pontos negativos. Assim, a grande ?técnica? para o desenvolvimento de uma disciplina científica é o ?espírito crítico?. Uma teoria científica ?verdadeira? não passa de um mito, de uma ilusão, ou de um saber mitificado. Um cientista não é defensor de alguns conhecimentos, é seu pesquisador. Quem vive apenas de certezas sofre de esclerose de pensamento e de esterilidade do poder criador. Ora, tudo isto se aprende na filosofia! E tudo isto convém saber! Mesmo os agentes do futebol. Não se nega a verdade. Só que ela deve introduzir-se, no tempo humano. Também a verdade é história.
Por isso, a pedagogia do desporto, os métodos de treino, o modo e o conteúdo da arbitragem devem ser questionados. A verdade, só o é verdadeiramente, quando é uma procura incessante da verdade! Mesmo que o não entendam as assembleias riscadas de imprecações raivosas! Mesmo que o não entenda o ignorante Ministério da Educação que, segundo se diz, vai terminar com a Filosofia no 12º ano! Não sabe o Ministro que, sem a Filosofia, há todo um ?espírito crítico? que se perde? E, sem ele, há-de ser mais evidente e profundo o processo de barbarização da sociedade portuguesa ? do desporto português?


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo