O observador preocupado com os sintomas da "sociedade unidimensional" de que falava Marcuse há-de reflectir sobre o imperativo práxico e ético de apurar o seu "sentido de escolha" para escapar à rasoira uniformista que todos os poderes absolutos (políticos, económicos, religiosos, militares) empunharam, ao longo dos séculos, em nome de uma suprema aspiração: o reino da liberdade e da abundância. Só que este desiderato, sempre proclamado como um ideal colectivo, em que todos seriam iguais a todos, em consideração e oportunidades, logo se perfilou como uma expressão ideológica das várias culturas e civilizações, que, embora reclamando-se do reconhecimento de representações universais como a Natureza, o Homem e Deus, tendo verificado não ser fácil mudar o mundo, quiseram recriá-lo segundo as suas "interpretações", postulando então as leis e os rituais que correspondiam às exigências da manutenção dos poderes efectivos. Invasores, descobridores, cruzados, colonizadores - todos foram agentes duma "recriação" que, afinal, só visava "retocar" o mundo, a partir de um modelo neutralizador das diversidades culturais dos povos mais fracos, portanto à feição e medida dos interesses prevalecentes dos povos mais fortes. Milénios decorridos sobre encontros e confrontos de povos, culturas e civilizações, em que muitos poderes desapareceram e outros surgiram na corrente tumultuosa de um Rio chamado História (passe o "empréstimo" de um título de Mia Couto), e outros ainda, por instinto de sobrevivência, se remeteram para as margens do Tempo, esperançados em que o turbilhão não fosse o prenúncio do Armagedão - eis que um novo poder se apresenta como sendo o último paradigma: tem o nome de Estados Unidos da América, arvora a glorificada bandeira da Liberdade e da Abundância e, pela primeira vez na história da humanidade, é único a reinar sobre a Terra, empunhando duas "armas" - o capital e a técnica - e um "escudo" - a timocracia - com que se afirma capaz de suster ou desviar todas as torrentes e assim reformular o sentido da vida. Nas margens, rendidas perante o desafio americano ou não resignadas perante o sentimento de que a vida é um jogo de poderes em que ganha quem possui mais trunfos, entrecruzam-se as vozes dos espectadores: "Agora nós somos todos americanos!" - "Eu não sou americano e a vida não é um jogo!" Num recesso televisivo da ocidental margem lusitana, um grupo de "experts" da Economia (que Burnham incluiria na "pós-moderna" classe directorial dos "managers"), em ameno circunlóquio em que se debatia a inelutabilidade da dependência das "economias abertas" e o imperativo da "competitividade" para evitar que os 20% de mais ricos da população mundial se somassem aos 80% de pobres e remediados, assentiam com verdadeira fé de jogador darwinista: "Isto é um jogo, sim, em que só perde quem ficar de fora!" É verdade que nenhum declarou "Nós somos todos americanos", nem era preciso, face à evidência de um mundo de "soberanias limitadas". Mas estarrecia o observador preocupado, mesmo certo de que no mundo das ideias nada está concluso, verificar que, em Portugal, a espectral sociedade unidimensional que Marcuse, Baudrillard ou Lipovetsky caracterizavam como filha da racionalidade técnico-administrativa do aparelho produtivo e da "servidão voluntária" do consumidor por aquele induzida, já se manifestava também através de uma espécie de psitacismo - a doença que faz os papagaios repetir maquinal e acriticamente o que lhe dizem - e tranquila alienação: "Se o que nos dizem está errado, a culpa é deles!"
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