Página  >  Edições  >  N.º 119  >  A escola do meu insucesso

A escola do meu insucesso

Para a minha discípula

Darlinda Moreira,
doutorada ontem em Etnomatemática.

Luís Souta denominou-a  «A escola da minha saudade», em 1995; Stephen Stoer e Helena Costa: «A capacidade de nos surpreender», 1993, Luiza Cortesão: «Escola, Sociedade, que relação?» 1998, Luiza Cortesão e Stephen Stoer: «Levantando a pedra», 1999; Ricardo Vieira: «Entre a Escola e o Lar» 1996, Telmo Caria: «A cultura profissional dos professores», 1999, Ana Benavente: «Do outro lado da escola», 1987. Entre as várias denominações, que o desejo de escrever este texto, me faz omitir, obriga-me a omitir, manda-me não lembrar. Porque Darlinda Moreira e eu debatemos durante anos, qual a utilidade da escola para as crianças. Especialmente para crianças descendentes de pais, avôs, ou família, denominada por Paulo Freire, oprimida, sem alfabetização, ou, como dizem hoje, sem literacia. Referem sem literacia, entro outros, Filipe Reis, 1997:«Da antropologia da escrita à literacia», em «Educação, Sociedade e Culturas», António Firmino da Costa e Ana Benavente, 1996: «A literacia em Portugal. Resultado de uma pesquisa intensiva e extensiva», Augusto Santos Silva em 1994: «Tempos cruzados. Um estudo interpretativo da cultura popular», e Fernando Madureira Pinto, 1994: «Propostas para o ensino das Ciências Sociais..» Ou João Ferreira de Almeida e equipa, «socialmente excluídos», no texto de 1992: «Exclusão social». Excluídos do quê e de quê?. Eu diria, simplesmente, do saber social, da capacidade de entender o que Darlinda Moreira chegou a denominar, a mais básica das relações, a da interacção social. Explicada e definida para nós por Émile Durkheim, em 1893: «De la division du travail social», e 1924:: «Le socialisme», ratificada por Marcel Mauss em 1923: «Essai sur le don. Forme et raison  de l?echange dans les sociétés archaïques», escarafunchada por Pierre Bourdieu, em 1993, na sua obra colectiva «La Misére du monde» e na sua autónoma, de 2000, «Les structures sociales de l?économie». Uma escola para o insucesso, uma pedagogia do oprimido, parafraseando o nosso Mestre comum, Paulo Freire, uma escola que controla a força de trabalho de forma erudita. A escola tem utilidade pública quando ensina os meandros da cultura portuguesa e universal, a todos os seres humanos em geral. A escola é homogénea, se nela todos são iguais e usufruem do mesmo saber. Parafraseando Stephen Stoer e António Magalhães, somos, orgulhosamente, filhos de Rousseau. Mas, de qual Rousseau? Do republicano, do das Luzes, do «Emilio», do entusiasta Jean-Jacques que queria as crianças nascidas, criadas e limpas, antes de as ensinar? E de qual igualdade, a das Luzes? A dos direitos do cidadão de 1791, que, até hoje, se não materializaram?
A escola do insucesso é o melhor qualificativo para uma instituição que nasceu para igualar os seres humanos no saber, mas que enveredou pelas ruas da diferenciação heterogénea das classes sociais. A escola do insucesso é frequentada pelos descendentes dos iletrados, dos iletrados de direitos e dos iletrados de posses económicas para reproduzir a vida. Iletrados não de palavras, mas de ideias que os impedem de entender um fenómeno como o da globalização. Uma instituição que é suposto dar carinho, acolhimento, simpatia, lar, aos excluídos, descosidos, diria eu, da nossa sociedade. Porque a escola acaba por ser obrigatória, para aprender o que o investigador da academia tem prazer em descobrir e o docente de todo ciclo, prazer em ensinar. A escola é do insucesso calculado para criar a força de trabalho necessária para as indústrias funcionarem, trabalhando em horários diurnos ou nocturnos, com base em salários que, já em 1890 Durkheim referia no seu: «Leçons de sociologie physique de moeurs et de droit», Bordeaux e Istanbul, como Mauss em 1923, no ensaio já invocado, denominavam de mais valia para os proprietários e de miséria para o operariado. Quem, ao saber desta experiência social, ao saber destes factos, dentro dos quais o Estado é sempre devedor à maior parte da população, denominada cidadãos, quem, dizia, quer ter sucesso na escola? Vivemos a época da propriedade, da posse, de mostrar o valor a mais do nosso saber e capacidade de mandar com autoridade e segurança. Essa segurança que, até como diz António Nóvoa no seu texto de 1991: «Profissão Professor», falta ao docente: nunca sabe se o seu trabalho continua e em que sítio ensinará. A escola é uma guerra entre o saber cultural e o saber erudito que se tenta impingir aos indivíduos mais novos de todo e qualquer lar, saber erudito que nunca teve a precaução de entender antes de falar, esse saber escondido na mente do estudante e da sua família, do seu bairro ou rua ou aldeia ou etnia. Um saber menosprezado, como refiro em outro texto, por ser «conveniente» para incutir o saber «devido» porque a lei o define, porque um conjunto de académicos bem remunerados, define em instituições que custam mais do que cem declarações do IRS. Especialmente, o saber do cálculo. Quanto mais longe da economia, mais certo passa a ser o poder do investidor, porque, a quem menos saiba, menos dinheiro é pago ao fim do mês. Caso não hajam desemprego, despedimentos ou falências.
A escola da minha saudade, como diz Luís Souta, é, para mim, autor deste texto, a escola da igualdade. Escola semelhante às privadas como o «Moderno», os «Maristas», os «Salesianos» e outros, que custam imenso dinheiro e que o povo é incapaz de ?agarrar?. A escola do insucesso foi criada para produzir a força de trabalho de toda nação. Essa que divide o grupo social numa minoria de intelectuais e numa maioria de operariado, com amplas possibilidades de desemprego. Análise estruturada pela Doutora Darlinda Moreira, ao longo de dez anos.
A miséria do mundo começa, para o estudante, no seu insucesso. Provocado pela diferença de classe social da origem dos saberes que são obrigados a entenderem, queiram ou não. E que, digo eu, acabam por abandonar. O nosso país é o que mais faltas acusa de conclusão do currículo escolar. O insucesso é a miséria do mundo e é causado pelas estruturas sociais da economia ou, como eu denomino, a reciprocidade dentro da mais valia.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo