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?ET?

Não vemos os herdeiros do ensino tradicional (ET) a consumir programas imbecis que uma televisão à medida do ?gosto médio? lhes impinge? Não vemos os herdeiros do ?ET? incapazes de decifrar a mensagem contida na posologia de um medicamento ou num edital? Não os vemos privados de entendimento de mensagens estéticas que fazem os humanos mais humanos? Não os vemos ao volante, obscenos e estultos, a ultrapassar-nos numa curva, ou ?chicos espertos? a ultrapassar-nos nas filas de espera?

Eu tenho um amigo que vende livros de porta em porta. Vai de porta em porta, metendo conversa com eventuais compradores. É um homem culto com quem aprendo da sabedoria que não vem nos livros. Quando me visita, eu paro tudo o que estiver a fazer. E enceto longas conversas sem assunto agendado, mas que nos conduzem sempre a inesperadas reflexões. Ontem, falou-me da escola dos filhos e da escola que foi sua:
- ?Antigamente, era muita matéria a que a gente era obrigada a aprender. Mas, vai-se a ver, pouco ficou. Fazíamos muitas cópias, mas hoje metemos muita água a escrever.?
Enquanto o escutava, recordava um episódio recente. Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens entre os vinte e os trinta anos. Discutíamos as virtudes e os defeitos da ?escola de antigamente?, num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens empertigou-se e assumiu a defesa do chamado ?ensino tradicional? (a seguir abreviado para ?ET?):
- ?Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu andei no ?ET? e saí de lá muito bem preparado!?
- ?Ainda bem.? ? respondi, atenuando a irritação do meu jovem aluno.
Ele insistiu, realçando as qualidades do ?ET?, nomeadamente, ?a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa? (sic).
Eu contrapus, chamando a atenção para as conclusões de estudos internacionais nesses domínios, que nos colocam na cauda da Europa (como, aliás, é costume), contrariando os hipotéticos méritos do ?ET?. E acrescentei:
- ?Permitis que vos coloque algumas perguntas??
- ?Faça o favor!? ? disseram alguns num tom desafiador.
Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, uma relacionada com a Matemática, outra com o Português. Os jovens entupiram. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de embaraço.
Eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a uma pergunta matreira à qual nunca ninguém, até esta data, me soube responder:
- ?Quem descobriu os Açores??
Se nas áreas nobres já estávamos conversados, a incursão na História de Portugal acabou com a resistência daqueles jovens tão combativos. Todos tinham decorado o sistema galaico-duriense, todos tinham decorado o ?a ante, após, até??, todos se gabavam de saber na ponta da língua as datas das descobertas marítimas portuguesas e os nomes dos audazes achadores. Tudo se lhes tinha varrido, à semelhança do que decoravam para os exames que preencheram o seu itinerário escolar até à universidade. Tudo tinham ?vomitado? (sic) nos testes e frequências da saga universitária e depois esquecido, para ?arranjar espaço para o que não cabia nos copianços? (sic).
Magnânimo (como convinha à circunstância?), eu lá fui dizendo que nem tudo se deve rejeitar no ?ET?, que é falsa a dicotomia entre moderno e antigo, inovação e tradição. Afirmei-lhes ter testemunhado inovações no ?antigamente?, ilustrando a afirmação.
Nos primórdios da década de setenta e nos vigiados e estreitos corredores de liberdade de uma escola sujeita aos ditames do Estado Novo, um professor desafiou-me para a aventura de um conhecimento que nos era sistematicamente ocultado. Incitou-nos a conduzir os nossos destinos:
- O que quereis fazer? O que quereis aprender? ? perguntou logo no primeiro dia de aulas. E nós ficámos perplexos, receosos de uma eventual armadilha espoletada no discurso. Rapidamente se desvaneceu a desconfiança, e partimos na aventura de descobrir. No meu percurso de estudante, nunca mais ouviria da boca de um professor esses estimulantes desafios. Mas as palavras e os gestos desse professor ficaram a levedar no mais profundo do subconsciente, à espera do momento propício para se transmudarem em actos.
Uma frase proferida pelo meu amigo que vende livros confirmou o que o episódio vivido com os jovens me havia ensinado. Mas a humildade digna e sábia das suas palavras contrastavam com a arrogância de certos detentores de canudos:
- ?Por exemplo, estudei a História todinha, de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa. A gente tem de ser humilde e aceitar que as coisas eram mesmo assim. Mas deixa-me pena! Sabe, nós éramos dez irmãos e nenhum foi capaz de se agarrar aos livros. Eu ainda andei a estudar de noite, mas não cheguei a lado nenhum. Ninguém nos dizia que podia ser diferente e a gente não adivinhava.?
O meu amigo que vende livros de porta em porta tem algo que o distingue de muitos compradores: esse meu amigo lê os livros que vende. E, porque lê, vai preenchendo lacunas herdadas do ?ET?. O meu amigo é uma pessoa culta, apesar de ter perdido tempo numa escola de ?ET?. Mas, se no domínio da acumulação de conhecimentos, o ?ET? falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? Quem se dá conta da falência do ?ET? (também) nestes domínios?
Dirão alguns que a tradição já não é o que era antes de Barrancos? Porém, o tradicional alheamento da escola relativamente à educação dos afectos, o tradicional ostracismo a que é votado o desenvolvimento sócio-moral dos jovens, contribuem para reforçar a ideia de que teremos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vícios privados e públicas virtudes.
Vede o escândalo da pedofilia e o escândalo de uma comunicação social ávida de escândalos, que macula uma informação que denuncia com exercícios de mórbido sensacionalismo. Não vemos os herdeiros do ?ET? a consumir programas imbecis que uma televisão à medida do ?gosto médio? lhes impinge? Não vemos os herdeiros do ?ET? incapazes de decifrar a mensagem contida na posologia de um medicamento ou num edital? Não os vemos privados de entendimento de mensagens estéticas que fazem os humanos mais humanos? Não os vemos ao volante, obscenos e estultos, a ultrapassar-nos numa curva, ou ?chicos espertos? a ultrapassar-nos nas filas de espera? Não os vemos a empurrar o crude para as costas dos vizinhos, alheios às consequências do gesto, esquecendo a necessidade de novos códigos morais e jurídicos, escamoteando a necessidade do respeito por todas as formas de vida e pelo património comum?
Uma das características do ?ET? é a insistência numa mera transmissão de conteúdos desligada da compreensão e integração dos saberes. E o fenómeno da acumulação cognitiva atinge o seu clímax em exercícios de erudição balofa. Muitas publicações recentes não avançam sequer uma proposta original, são alinhavos de citações. Muitos cursos de formação são repositórios de citações de citações.
Se já vamos na geração dos que se citam uns aos outros, isto é, dos que citam aqueles que citaram aquilo que outros escreveram, hão-de suceder-lhes os que farão citações de citações de citações de citações... Há até quem não tenha conseguido alterar o ?ET?, há quem se tenha furtado às agruras do quotidiano das escolas de ?ET?, e agora venha ensinar aos práticos as práticas ?alternativas? que não conseguiram pôr em prática.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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