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Reforma do Ensino Secundário: baralhar e dar de novo

O Ministério da Educação (ME) apresentou à opinião pública umas «Linhas Orientadoras da Revisão Curricular» do Ensino Secundário. Após uma primeira leitura fico com a impressão de que esta reforma não passa de uma reciclagem de decretos e despachos. Pelo impacto que vai ter na vida dos nossos estudantes, e na actividade profissional dos professores, o documento merece atenção. A ele voltarei num próximo número. De momento ficam algumas reflexões  desencantadas.

O documento apresentado pelo ME é titulado de «Reforma do Ensino Secundário, Linhas Orientadoras da Revisão Curricular». De facto o ministério, e o primeiro-ministro, apresentaram  estas ideias como sendo «a Reforma do Secundário de que o país carece». No corpo do texto, e a propósito de uma previsível alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo, diz-se que este sector de ensino assumirá uma diversidade de oferta traduzida em cinco modalidades: Ensino cientifíco-humanístico ?ainda o tradicional ensino liceal ?; Ensino tecnológico; Ensino Artístico; Ensino profissional e Formação vocacional. Destas cinco modalidades, o documento apenas se pronuncia sobre as duas primeiras. E esta é uma das lacunas que a «Reforma» apresenta. Se o secundário é constituído por cinco modalidades de ensino «sem sobreposição nem concorrência imperfeita» não se entende como se pede opinião sobre a «Reforma» quando três das cinco modalidades nos são ocultadas. A dificuldade é ainda maior quando o Governo nos afirma querer que o futuro Ensino Secundário tenha a duração de seis anos divididos em dois ciclos. Na verdade, a impressão com que se fica, é que o ME nos quer «vender» uma «Reforma» a retalho. Julgo ser do mais elementar bom senso pedir ao Ministério que faça o trabalho de casa com conta, peso e medida, e nos apresente uma proposta global de reforma em que cada uma das propostas seja devidamente explicada e sustentada. O que agora nos apresenta não é uma reforma, quando muito são umas linhas orientadoras da alteração curricular das modalidades Ensino Geral e Ensino Tecnológico ou uma revisão ou actualização curricular ou ainda um mero expediente para reduzir alguns cursos, algumas disciplinas e alguns custos em materiais e mão-de-obra.
Defendo, desde os debates sobre a Reforma de 1989, que o nosso sistema de ensino não precisa de uma reforma mas de ser reinventado. Estou convencido que as reformas apenas acentuam a degradação do sistema. As reformas não põem em causa a estrutura que enforma o edifício educativo. Ora este edifício, que herdámos do século XIX, e temos reformado sucessivamente desde então, foi pensado para objectivos que já não correspondem às necessidades do nosso tempo. Já não queremos um ensino selectivo, normativo, pensado para uma minoria, tendo como objectivo formar pessoas para encaixar nos patamares das hierarquias sociais e profissionais. Hoje queremos um ensino para todos, capaz de tirar partido da cultura e das capacidades de cada um que seja inclusivo e proporcione uma formação que se possa aprofundar e ampliar ao longo da vida. O que hoje se pede à escola não cabe no velho edifício que herdamos mesmo que este sofra ampliações, nova pintura ou alguns remendos.
Por esta razão as «Linhas orientadoras da revisão curricular», agora apresentadas para discussão,  são ainda mais pobres. A visão que as sustenta é meramente instrumental, tecnicista e passadista. De facto, não basta dizer, como diz no preâmbulo o ministro, que «assumimos o risco de mais uma reforma na educação, convictos da sua inevitabilidade. A alternativa é a resignação decadentista ou a ilusão de uma revisão envergonhada». Não é só a resignação que pode ser decadentista. A trapalhice, a ignorância dos problemas reais, a colagem de algumas ideias feitas, o senso comum, o desprezo pelo pensamento e pelo conhecimento produzidos na área da investigação em ciências da educação, podem, entre outros comportamentos, conduzir o sistema para situações não só de decadência mas também de apodrecimento.
Estas linhas orientadoras apresentadas pelo Governo não nos deixam perceber o que ele quer. Continuamos sem saber qual é, na opinião do ME, a natureza do ensino secundário. As decisões enumeradas pelo curto documento não são justificadas nem clarificadas. Tudo se confina a uma proposta de «revisão curricular», ora o ensino ? o básico e o secundário ? precisam mesmo de mudar. De mudar as mentalidades que o sustentam e as lógicas em que ele funciona. E sobre isso a «reforma» não diz nada.
Um editorial aqui publicado em Dezembro de 1999, tinha por título «O Ensino Secundário não é uma ponte entre o Básico e o Superior». Nesse texto eu reafirmava a preocupação de se alterar a natureza deste sector de ensino dando-lhe finalidades em si mesmo e, sobretudo, romper com a dependência em relação ao ensino superior. Enquanto o secundário for uma ponte entre o Básico e o Superior não interessa saber se o tabuleiro da ponte foi alargado, quantas faixas de rodagem passa a ter e se estas são separadas por traço contínuo ou intermitente, ou qual o grau de facilidade ou dificuldade em mudar de faixa de rodagem. Nada muda se no fim for tudo dar ao mesmo funil e daí ao mesmo fumeiro.
Como todos sabem, nós portugueses, partimos à aventura pouco depois de termos definido as fronteiras do nosso país. Vivemos primeiro à custa da Índia. Depois veio o Brasil. Perdido este, socorremo-nos da África e agora agarramo-nos à União Europeia. Esta dependência externa ? que nos acompanhou nos últimos cinco séculos ? deixou marcas. Não investimos cá dentro. Não tivemos mercadores que quisessem ser burgueses. Tivemos uma nobreza que se fez mercadora. E, mais tarde, quando apareceu uma burguesia frágil, mal esta sentia o dinheiro a tilintar no bolso pedia títulos de nobreza. Com o tempo só mudaram os nomes. Fomos tendo condes, comendadores, bacharéis, licenciados, engenheiros, mestres, doutores. Gente sôfrega de títulos,  muito dada ao estatuto e pouco dada ao trabalho produtivo. Enquanto assim for, o Ensino Secundário, enquanto ciclo autónomo de estudos estará condenado. É que a maioria dos alunos desiste antes ou no fim do Ensino Básico ? aceitando viver com a miséria do salário mínimo ou pouco mais. Os outros, a minoria, procura chegar à capa e batina, durante, e ao título e anel de brasão no fim do Ensino Superior. Em Portugal não se gosta de aprender pelo gosto de saber ou para exercer uma actividade. Estuda-se para se obter um título e um anel de brasão. E também se é reconhecido e pago não pelo que se produz, mas pelo título de «nobreza» que se apresenta.
É preciso mudar estas velhas lógicas instaladas. Na última década decaiu em Portugal a oferta líquida de emprego qualificado. Mas permanece o discurso de que precisamos de trabalhadores qualificados. Quantos são precisos? Em que áreas de qualificação? Com que níveis de formação? Quanto estão dispostos a pagar-lhes? Importa que nos entendamos sobre os rumos que querem para o país e para a globalidade do nosso sistema de ensino.
Pelo que até agora produziu e apresentou à opinião pública, somos levados a concluir que o actual Governo da educação é incompetente. Incompetente, ignorante, arrogante e autista. Desenvolve a sua actividade em três andamentos mal tocados. No primeiro, alinhava umas ideias rascas, enaltece-as, alegra-se com elas e decide aplicá-las de supetão. No segundo apresenta as «medidas» à opinião pública, gaba-se da sua «coragem reformadora» e insulta quem o critique. No terceiro andamento publica o que rascunhou no primeiro.
Estas «Linhas orientadoras da revisão curricular» fazem parte de um jogo fraco, envelhecido e sem interesse. Não adiantam nada à miséria que temos. O Governo só baralhou e deu de novo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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