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Retrato de um país à beira de um ataque de nervos

Como encaram os professores portugueses o presente e o futuro do país? Como vêem o sistema educativo? O que os preocupa no quotidiano? Há alguma solução para Portugal? Estas são algumas das questões que foram colocadas a um grupo de professores entrevistados pela Página, que mostram um país descrente de si próprio.

Tentar avaliar o estado de espírito dos professores portugueses numa altura em que uma "crise" económica e institucional parece ter-se abatido sobre o país sem qualquer espécie de pré-aviso, foi a tarefa a que nos propusemos este mês. A avaliar pelo teor geral das respostas o pessimismo parece ter-se instalado na maioria. Preocupante seja talvez o facto de ele atingir também os mais jovens, que, à partida, têm mais motivos para manter uma atitude positiva.
É o caso de Pedro Rodrigues, um jovem professor de matemática de 29 anos, cuja estabilidade profissional espera ainda por melhores dias. Há já quatro anos que concorre nos mini-concursos e o melhor que conseguiu foi um horário incompleto numa escola da periferia do Porto. Já deu aulas no Alentejo, depois passou por Aveiro e no ano passado obteve finalmente colocação perto de casa. Resolvido este problema, outro se coloca: como fazer para sobreviver mensalmente? Para complementar o parco salário que aufere - não chega sequer aos cem contos - decidiu começar a dar explicações a alunos do ensino básico. "Hoje em dia é uma das poucas possibilidades que resta a quem escolheu ensinar. A precaridade de emprego na educação não deixa vislumbrar muitas alternativas".
A faceta mais terrível desta instabilidade profissional, explica, nem é tanto o facto de ela se manifestar na precariedade salarial, mas antes na impossibilidade de aceder a determinados bens de primeira necessidade, como o empréstimo para a compra de casa. "Com a minha idade, os meus pais já tinham uma casa própria e estavam a criar os filhos. Hoje isso é mais difícil".
Quem também não parece encarar o futuro profissional com grande entusiasmo é Eduarda Coelho, 26 anos, educadora há três. Também ela critica o Estado por não dar resposta às necessidades de emprego dos jovens professores e vê no sector particular e cooperativo uma área com saída crescente. Os sucessivos governos, aliás, "parecem ter-se esforçado por aumentar o protagonismo do ensino privado". Isso seria justo, assegura, não fosse o facto de os salários e as condições de trabalho nessas instituições estarem "muito abaixo das expectativas" dos professores, diz.
Eduarda conta, por exemplo, que uma amiga foi recentemente "convidada a sair" de uma jardim de infância privado por integrar uma estrutura sindical e nessa qualidade ter liderado a contestação interna a um processo de contratação individual das educadoras. O caminho, refere, parece cada vez mais apontar para uma restrição dos direitos individuais e do trabalho, nomeadamente no que respeita à reivindicação de melhores condições de trabalho. "Querem fazer de nós uns carneiros bem comportados", diz, esboçando um sorriso trocista.
O mito do "emprego seguro" no ensino parece assim ter-se desvanecido na geração mais nova. Essa opinião é também partilhada por Inês Carvalho, 32 anos, professora no distrito de Braga, que confessa começar a ficar "farta" de ser tratada como uma "mera funcionária pública" e não como uma educadora. "A educação poderia ser uma garantia de futuro para este país, mas parece que infelizmente os políticos portugueses ainda não perceberam isso".

Pessimismo não é exclusivo dos jovens

Mas não são apenas os mais jovens a encarar o futuro com algumas reservas. Os professores mais velhos parecem igualmente ter uma perspectiva sombria acerca da profissão e do país. Queixam-se não tanto da instabilidade profissional - a larga maioria está  no quadro, ao contrário do que acontece com os mais novos -, mas da crescente agressividade e da falta de valores, que, inevitavelmente, acaba por se reflectir no comportamento dos alunos na escola.
Apesar de não se considerar uma saudosista dos tempos da ditadura, Maria Amélia Costa, 53 anos, professora numa escola secundária do centro do Porto, admite que "antigamente havia mais disciplina" e que os alunos "eram mais bem comportados". "Não sei o que se passa actualmente, mas a sociedade parece andar à deriva, sem qualquer espécie de orientação, e acredito que isso se reflicta no comportamento das pessoas".
Apesar de reconhecer que se avançou para conquistas tão importantes como a generalização da oferta de ensino básico a todos os portugueses, Amélia Costa faz mea culpa e critica a sua geração por não ter conseguido levar a cabo os objectivos pelos quais tantos anos lutou e fala dos "maus exemplos" dados pela classe política. "Como é possível que os portugueses não sejam peritos em evasão fiscal quando todos os dias ouvem notícias de fraudes financeiras, muitas vezes praticados pelos mesmos que deveriam garantir que isso não aconteça?", questiona-se.
A descrença no papel do Estado é aparentemente generalizada, a avaliar pelo testemunho dos professores ouvidos pela reportagem da Página. "Penso que de uma forma geral os professores se sentem desgastados por um Estado que não os reconhece e por uma sociedade que os desvaloriza", diz Elsa Araújo, 43 anos, professora na mesma escola. Na sua opinião, as expectativas que estes profissionais mantiveram durante anos relativamente às promessas dos diferentes governos face à educação saíram goradas. Esse, garante, é um dos principais motivos para a "acomodação" da maioria destes profissionais.
"Não podem imputar-nos responsabilidades com a facilidade com que hoje acontece. É necessário que haja um esforço correspondente do Estado em relação às questões sociais porque elas são uma das principais causas das falhas do sistema educativo", comenta Elsa Araújo. Certa vez, um aluno confessou-lhe que a refeição que tomava na escola era a única que ingeriaao longo do dia. Isto deixou-a "profundamente triste e decepcionada" com o seu próprio país. Não por ser um episódio único - "quantos mais não haverá por essa terra?" - mas por nunca antes se ter confrontado pessoalmente com esta situação. "Como é possível que isso ainda hoje aconteça?".

Uma réstia de optimismo

Não gosta de dar entrevistas nem de falar de política, mas acedeu a falar à reportagem da Página sobre as questões que mais a preocupam e as expectativas que ainda mantém relativamente ao país e ao mundo. O discurso é cáustico. "Por vezes sinto que a escola é um mero exercício de hipocrisia", afirma M. C., 36 anos, que preferiu não se identificar pelo verdadeiro nome. "Como podemos apregoar valores para a paz e para a tolerância quando ela está diariamente presente na rua e na televisão?".
Está no "sistema", como prefere apelidar o meio profissional, há já doze anos e continua sem vislumbrar um "projecto coerente" para a educação e para o país. Essa "acomodamento", garante, reflecte-se nas práticas profissionais. Na escola "torna-se difícil alterar processos e mentalidades" que já se encontram enraízados. "Quando tentamos fazer algo de diferente somos quase vistos como uns subversivos", explica M.C.
Sentada frente à secretária que já ocupa há praticamente tantos anos quantos os que ensina na escola nº 34, situada na zona oriental do Porto, Cristina Pereira reflecte uns momentos antes de responder à questão que lhe acaba de ser colocada. "Preocupa-me a crescente agressividade dos miúdos mais novos", refere após uma curta pausa. "Penso que a sociedade se alterou muito nos últimos anos e que a escola talvez não se tenha conseguido adaptar a essa nova realidade".
Na sua opinião, são os jovens professores são quem mais irá sofrer com a crescente fragilização das relações institucionais, porque é sobre a classe que habitualmente repousa a responsabilidade pelo falhanço das políticas dos governos. "Mas como é que eles podem sentir alguma paixão pela profissão quando o Estado não os valoriza e não lhes dá condições para exercerem dignamente a profissão?".
Parecendo contrariar tudo e todos, Anabela Silva, professora do ensino básico, vê o presente e o futuro com algum optimismo. Diz que o país "já passou por pior" e que estar colocado entre os primeiros 30 países do mundo é "muito digno". Quando ouve falar os "fatalistas", como apelida as vozes que dizem que o país vai de mal a pior, lembra-se sempre daquela afirmação do presidente [norte- americano John] Kennedy: "Não perguntem o que o vosso país pode fazer por vocês, mas antes o que vocês podem fazer pelo vosso país".


  
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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