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O ranking das escolas: algumas reflexões não necessariamente tardias

Os efeitos da operação "Ranking" sobre os resultados escolares a nível nacional estão longe de se esgotarem  no aumento das vendas dos jornais, que trataram da efeméride, ou nas manifestações mais ou menos jubilosas ou mais ou menos indignadas das escolas afectadas positiva ou negativamente pela publicação.
Para além desses e de outros que são esperáveis no domínio dos comportamentos estratégicos dos consumidores da escola, (especialmente pais e políticos interessados directamente no sector), há, ainda, uns tantos efeitos que, por se inscreverem em áreas voláteis da relação social, escapam mais facilmente à sua tematização e reflexão. Estão neste caso os efeitos cognitivos da operação em referência.
Por efeitos cognitivos, entende-se a produção ou o desenvolvimento de determinado sentido no plano das referências da consciência psico-social dos indivíduos por força do uso de operadores linguísticos dominantes que geram e legitimam práticas sociais consensualizadas. Estes efeitos são particularmente relevantes em sectores sociais onde, por exigência das condições  de pertinência ética e socio-profissional e/ou proximidade experiencial, a relação entre práticas e discursos legitimadores tende a assentar numa representação cognitiva unívoca, indispensável à preservação da identidade social e profissional, que é uma condição fundamental à sua função de regulação social e política.
È por via desta relação que o mundo dos professores e educadores é particularmente visado na operação "ranking", embora o objecto directo (do discurso) da operação sejam as escolas tomadas como organização. Pretende-se recondicionar o pensamento e a acção dos profissionais da educação a um modelo de prática profissional onde a natureza do resultado  a alcançar está directamente dependente da vontade e do esforço individual dos parceiros da acção. Trata-se de  reabilitar uma concepção da acção e do respectivo mérito a partir das velhas teorias psicologistas que preconizavam o exercício da vontade com vista à sua auto-determinação, no pressuposto de que a educação é, essencialmente, um processo de interiorização  de valores e de regras inerentes aos processos de aprendizagem dos conteúdos.
Nestes termos, são os factores subjectivos que desempenham um papel fundamental no sucesso educativo: em primeiro lugar, os que derivam da intervenção dos professores e dos educadores e, em segundo lugar, dos alunos, dos pais e encarregados de educação. Os factores objectivos, quais sejam os que são imputáveis às condições socio-económicas e culturais, aos que são inerentes à própria relação social, aos múltiplos e incontroláveis ingredientes da  vivência quotidiana, esses são dados como secundários na produção dos resultados escolares. As variáveis organizacionais, tais como as que  se reportam à gestão das escolas, assumem claramente uma condição mediadora ou, se quisermos, promotora  e reforçadora  desta visão psicologista e moralista. Na verdade, o modelo que se prevê para a gestão das escolas acentua fortemente a função do controlo e a excelência da ordem e da eficácia que pretendem representar, no plano organizacional, as condições de afirmação dos indivíduos e da sua responsabilização. A separação entre a ordem pedagógica e a ordem administrativa e a clara subordinação daquela a esta impõem-se como corolários naturais daquela perspectiva de aprendizagem e de  escola.  Nada melhor do que as palavras do  actual ministro para dar conta disso: Com a actual lei, o ministério não tem capacidade de intervenção já que as escolas têm autonomia. O que contesto é a própria lei, porque tem de haver uma maior profissionalização da gestão...e tem de haver mecanismos de isenção e exigência nessa gestão?. (In O Público, 6 de Outubro de 2002).
Embora sem poder ir muito mais longe, por hoje, assinale-se a - naturalidade - com que o Ministro lamenta a falta de capacidade de intervenção do ministério por causa da autonomia das escolas. Essa naturalização só pode significar que, para o pensamento do Ministro, tal situação tende a ser uma aberração nos dias que correm. O efeito cognitivo que está em marcha é que o poder político e administrativo tem toda a legitimidade para impor uma política educativa ?mais eficiente na disciplina, no rigor e na exigência?, capaz de ?reconhecer o mérito de quem trabalha? (In ?Jl/Educação?, 2 de Outubro de 2002.
É claro que este efeito é tanto mais eficaz quanto mais se exprima numa linguagem socialmente preocupada: a disciplina, o rigor e a exigência,  assim como o reconhecimento do "mérito de quem trabalha"  não podem continuar a ser estranhos à cultura da escola. É esta a leitura que o Ministro insinua que a sociedade faça da escola, porque não me identifico com a escola do passado, com a escola que se instalou em Portugal nos últimos 15 anos?(Ib.). Neste sentido, o "ranking" está claramente do lado do Ministro, o que, evidentemente, não é de estranhar. A questão mais delicada, porém, é a de saber em que medida é que a lógica em que o ?ranking? se apoia não encontra acolhimento no universo cognitivo dos professores, doravante cada vez mais entregues a si mesmos, contraditoriamente vítimas  e heróis do próprio processo da ?rankinguização?...


  
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Edição:

N.º 118
Ano 11, Dezembro 2002

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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