A reconfiguração do discurso político: É possível falar a partir de um
"não-lugar" ou de um "lugar Branco"?
O conceito de não-lugares de Marc Augé pode auxiliar na caracterização dos
discursos políticos. De que forma?
Marc Augé fala de não-lugares, como os aeroportos, as gares, as auto-estradas,
enquanto locais de trânsito, de ausências, de suspensão do tempo e do
espaço.Numa tentativa de análise dos discursos políticos, pensamos que este
conceito pode auxiliar à caracterização de alguns deles. É possível, por
exemplo, argumentar que os discursos construídos a partir de "não lugares",
também se apresentam como lugares universais, quer dizer, independentes dos
contextos em que se situam e sobre os quais se debruçam. Os discursos
tecnocráticos mostram muitas destas características: falam como se o ponto a
partir do qual dizem fosse suficientemente neutro para os tornar, de alguma
forma, inquestionáveis. Neste sentido, são discursos com narrativas fortes,
emitindo instruções e impondo a passividade nos seus receptores. Michael
Porter, nas suas visitas de aconselhamento sobre o desenvolvimento da economia
e da sociedade portuguesas, assume um discurso deste tipo. Fala como se a
legitimidade das suas propostas fosse tão clara como as regras de higiene ou de
circulação das aerogares.
É interessante ? e importante ? distinguir entre o "não lugar" e uma outra
forma de legitimação política dos discursos que poderemos designar como
"lugares brancos". Estes caracterizam-se pela assunção de que existe uma
instância ética que os legitima de uma forma inquestionável em termos
epistemológicos e políticos. A preocupação com as finalidades da História e com
a emancipação final da Humanidade torna o conhecimento e as práticas dele
derivadas mais universais, mais legítimas, em suma, "melhores". Mais ainda,
esse lugar é tão claro que se torna invisível aos próprios olhos daqueles que o
habitam. Tal clareza dá uma inquestionável liberdade de ir além, no sentido de
desmistificar e de desvelar. Estes últimos constituem cruciais dispositivos de
análise sociológica, mas induzem a aparência de uma eventual existência de um
lugar absolutamente exterior ao chamado "sistema" a partir do qual se activam.
Isto suscita-nos o seguinte comentário: é preciso ir mais longe e desmistificar
e desvelar o lugar a partir do qual se pretende desmistificar e desvelar.
Michel Foucault partilhava desta preocupação e assumia que o sistema recuaria à
medida em que "ele o descobria e ele se descobria". Consequentemente, os
lugares brancos não existem, têm sempre a cor de um sistema ou de um contexto.
Quais são as implicações desta assunção para o trabalho sociológico e político?
A primeira, e fundamental, parece ser a afirmação de que a reconfiguração da
agência política, nos actuais contextos, re-politiza, de uma forma sem
precedentes, a análise e a acção políticas. A aceitação de que a
reflexividade institucional e individual é um dos factores estruturadores das
actuais sociedades não só reconfigura os paradigmas de análise política
tradicionais, como re-significa a própria concepção da acção política: a
sociedade e os cidadãos ao recusarem-se como objectos da acção do estado dão
uma dimensão política sem precedentes à própria acção política. A segunda
implicação é a de que, não existindo "lugares brancos", e recusando os
"não-lugares" acima referidos, ao assumir os nossos lugares contextualizados,
assumamos também as suas próprias limitações e condicionamentos. Neste sentido,
mesmo a reflexividade institucional e individual não proporciona
necessariamente um maior domínio sobre os processos sociais e políticos.
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