O re-encontro com a identidade étnica
A experiência de trabalho no ano de 2000 no Curso de
Pós-graduação lato sensu Alfabetização das
crianças das classes populares se apresentava como um desafio. Havia
uma singularidade na turma, que nossos sentidos não captaram inicialmente,
mas que foi se tornando visível com as narrativas das mulheres negras
presentes naquele cotidiano. Como se nossos ouvidos captassem pelas vozes interditas,
a cor negra ainda não assumida.
Na aula inicial, propusemos que todas se sentassem numa grande
roda e escolhessem dentre inúmeras imagens, colocadas ao centro, uma
com a qual se identificassem e falassem sobre suas escolhas. Nossa proposta
era partir da oralidade e depois, desenvolver um trabalho com a escrita, num
movimento que perpasse individual e coletivo.
Se a invenção da escrita matou a memória entre os homens:
eles já não sentem mais o calor da voz humana, como nos lembra
Niane , re-encontrávamos ali o momento de nos aquecer com as vozes que
contavam histórias, relatavam experiências cotidianas e práticas
alfabetizadoras, permitindo enriquecer nossas próprias experiências
e trabalhar com os conhecimentos emergentes das práticas, num diálogo
onde prática-teoria-prática se re-alimentavam continuamente.
A roda, a oralidade, as raízes africanas pareciam emergir, mesmo sem
que a priori tivéssemos consciência do movimento criado
e que propiciava a criação. O conhecimento vem pela palavra, pelos
gestos e pelo som – transmissores de axé. Se o axé é
princípio, é força vital corrente no encontro concreto
de dois seres, ali está desde o encontro erótico que gera vida,
até o parto, a acolhida primeira e ao longo da vida no esforço
cooperativo.
Um clima de cooperação era tecido, pois com o fio da narrativa
de uma, deixado no ar; outra, solidariamente, tomava a palavra e ia tecendo
fios de uma rede de narrativas que construíam o perfil de um grupo.
Em determinado momento, como que a desafiar os corpos e mentes, até então
limitados em seus espaços “permitidos” por uma ideologia
que, em nome de um mito da democracia racial delegara apenas o lugar de colaboradores
na História, Vera levanta-se e ousa dizer: Eu nunca vi um curso de pós-graduação
com tanta mulher negra!
Embora parecesse óbvio, pois, fenotipicamente, a maioria das mulheres
presentes na sala poderia ser considerada negra, o dito por Vera causou um certo
desconforto. Quem seriam as mulheres negras presentes no curso? Todas? O que
significaria estarem assumindo sua ‘negritude’?
As representações em relação ao negro são,
em geral, negativas e, historicamente, têm marcado suas vidas e demarcado
os espaços sociais. Depreciado em alguns aspectos de seu comportamento;
desvalorizado intelectual e moralmente; considerado física e esteticamente
feio ou exótico, por seus traços negróides, considerados
rudes, não elegantes diante do padrão de beleza branca; culturalmente
identificado como portando uma cultura primitiva, ainda precisando civilizar-se.
Como deve sentir-se o(a) negro(a) nesta sociedade? Como vem construindo sua
identidade étnica num país que apregoa a democracia racial, mas
que, ao contrário, o que faz é negar a diferença e manter
a desigualdade?
Difícil conseguir capturar a intensidade do momento de troca de experiências
nos encontros que tivemos durante o curso. Uma história ressignificada
ao sabor da emoção e consciente de que a construção
da identidade étnica de mulheres negras, fruto de experiências
compartilhadas, não é uma história linear. Assumir-se negra
é uma experiência que traz o prazer de saber-se potente, ao resgatar
a História e a Cultura, ao valorizar a estética, a arte e os valores
de origem, mas é, também, uma história de conflitos e de
dor.
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