A justificação social que estava na base do
direito à educação deu lugar a uma justificação
económica. A massificação do ensino tornou incerta a relação
diploma- emprego e este deu lugar à empregabilidade.
Nas décadas que se seguiram ao meado do século
XX houve uma enorme aposta na utilização do sistema de ensino
como um factor de desenvolvimento e promoção da mobilidade social.
Neste período, os sistemas de ensino superior massificaram-se tendo em
vista assegurar a um número sempre crescente de jovens o acesso a um
nível de formação terciária. A educação
foi ganhando foros de um verdadeiro direito humano, progressivamente alargado
ao universo dos jovens de cada país; o reconhecimento da importância
social da educação justificou que os Estados a tornassem obrigatória
por períodos cada vez mais alargados.
Nas duas últimas décadas tem-se assistido a um fenómeno
insidioso de precarização do emprego e do surgimento de um novo
conceito, o da empregabilidade. O direito ao emprego, ou pelo menos o direito
ao trabalho, que constitui ornamento garboso de muitas Constituições,
passou a ser substituído pela ideia mais volátil e incerta de
empregabilidade. Isto constitui uma desvantagem adicional para o trabalhador
num mundo em que a rápida mutação do conhecimento exige
um esforço crescente de formação contínua: é
que o desempregado poderá ser tido por réu da sua própria
situação pouco feliz por ter descurado manter o seu nível
de empregabilidade.
A justificação para a educação foi também
alterada; em vez de uma justificação em termos de direito social,
a educação passou a ser vista sob uma perspectiva “racional-económica”,
para a qual uma melhor qualificação da “força de
trabalho” será um ingrediente fundamental para a competitividade
económica. No contrato implícito entre o ensino superior e a sociedade
o equilíbrio entre as funções sociais e culturais das instituições
e as suas funções económicas alterou-se a favor destas
últimas.
Porém, a massificação do ensino superior veio tornar mais
incerta a relação entre a obtenção de um diploma
e a garantia de um emprego compatível, aspecto ainda mais acentuado pela
crescente precarização dos empregos como consequência da
globalização da economia. Como reconhece Jordan, este fenómeno
veio “lançar a incerteza entre a classe média que vê
desfazer-se em fumo o seu futuro e o dos seus descendentes” devido ao
congestionamento não planeado das profissões e dos lugares de
gestão.
Uma das consequências desta evolução tem sido o deslocamento
da classe média para a direita do espectro político, com a consequente
diminuição do apoio às medidas de democratização
das políticas sociais da educação. Numa situação
de crise, as classes média e superior sentem necessidade de apoiar políticas
que voltem a dar-lhes e aos seus descendentes uma nova vantagem competitiva
num mundo cada vez mais hostil e incerto. As classes mais favorecidas passaram,
portanto, a apoiar políticas musculadas que reforçam a sua distância
para as classes mais baixas, o que determinou a emergência de políticas
que punem os menos capazes e identificam publicamente as piores escolas, na
convicção de que os incapazes serão certamente os filhos
dos outros, remetidos para a frequência dos estabelecimentos de ensino
de menor qualidade. As medidas anteriores que visavam a criação
de uma escola inclusiva, uma escola aberta a todos, símbolo de um sistema
que favorece a mobilidade social e a igualização dos cidadãos,
passaram agora a ser atacadas em nome da defesa e promoção da
qualidade do ensino, se necessário com recurso à substituição
progressiva das inovações pedagógicas por pedagogias tradicionais
reinventadas (os exames, os procedimentos disciplinares, os chumbos, etc.).
As medidas destinadas a assegurar que nenhuma criança seria deixada para
trás em nome da concretização de um direito social à
educação, começaram a ser vistas como apoio descabido aos
preguiçosos e incapazes; os descendentes das clases menos favorecidas,
em vez de serem objecto de um tratamento especial para eliminar a sua desvantagem
inicial, passaram a ser punidas por não terem uma família adequada.
As movimentações a favor da publicitação dos rankings
das escolas e do aumento da escolha parental dos estabelecimentos de ensino
inserem-se neste novo objectivo de retoma de uma vantagem competitiva por parte
das classes mais favorecidas. Um estudo recente do Observatório Permanente
da Juventude (Bárbara Wong, jornal Público, 29 de Março
de 2002) revelou que os indivíduos oriundos das famílias que não
ultrapassam o 1º ciclo do básico “têm entre nove a vinte
vezes menos probabilidades de aceder à universidade do que os que são
provenientes de grupos domésticos que atingiram o mais alto nível
de escolaridade”; mostrou, ainda, que a probabilidade de acesso é
mais baixa nas regiões do interior Norte e Centro, justamente aquelas
onde existem lacunas na oferta de ensino, além de serem das menos desenvolvidas
e mais despovoadas, com desigualdades sociais mais acentuadas.
Todos os estudos feitos sobre sistemas de ensino que promoveram a escolha parental
baseada nos rankings das escolas mostram que esta política se traduziu,
essencialmente, na defesa das classes mais favorecidas, uma vez que as outras
não têm conhecimentos, cultura ou mesmo capacidade (por exemplo,
devido ao problema dos transportes) para beneficiar plenamente das novas políticas.
Ou seja, em vez de se utilizar a escola para promover a igualdade social e esbater
as desigualdades educativas de origem social, a escolha parental permitiu reforçar
estas desigualdades e perpetuar uma vantagem de classe bem expressa pelos resultados
do trabalho do Observatório Permanente da Juventude.
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