Apesar de ter passado parte da infância em Oliveira de Frades (Vale do Vouga,
Viseu) e ter morado em Coimbra (1950-56), Natália Nunes é uma mulher de Lisboa.
Aqui nasceu (1921), aqui estudou (Liceu Mª Amália Vaz de Carvalho e Faculdade
de Letras, onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, 1948), aqui
trabalhou (Bibliotecária, durante alguns meses, nas Bibliotecas da Ajuda e
Nacional, 1956-57; Conservadora do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1957-68,
e Bibliotecária na Escola Superior de Belas-Artes, 1968-87, depois de ter
tirado o curso de Bibliotecário-Arquivista na Universidade de Coimbra, 1956;
recebeu o Prémio da Associação Portuguesa de Arquivistas e Documentalistas,
1977), aqui tem produzido a sua obra literária (romance, novela, conto, teatro,
memória, narrativas de viagem, teatro, ensaio, tradução) e aqui reside desde
1957.
Colaborou em jornais e revistas (DL, DN, DP, JN, O Primeiro de Janeiro, JL,
Cronos, A Esfera, Seara Nova, Vértice) e na rádio com uma série de palestras
sobre "Os símbolos dos partidos políticos". Fez parte da última Direcção da
Sociedade Portuguesa de Escritores (1965) e da Associação Portuguesa de
Escritores (1978-79).
Acabou de entregar à Biblioteca Nacional, no passado 6 de Maio, o Espólio de
seu marido, o professor Rómulo de Carvalho (poeta António Gedeão), com quem
casou em 1945 e de quem teve uma filha. Hoje é avó de três netos e sente-se
disponível para retomar os seus projectos literários.
Não sei se é correcto dizer que a escrita da Natália Nunes é influenciada pela
sua profissão. O facto de ter sido bibliotecária arquivista tem alguma relação
com a ênfase da dimensão histórica na sua obra, designadamente em Horas Vivas
(Memórias da Minha Infância) e Memórias da Escola Antiga?
Não nada. Comecei a escrever as Memórias da Minha Infância num
impulso de registar coisas... e depois saíram umas memoriazinhas, incipientes,
embora muitas pessoas tivessem gostado... E não me arrependo de ter escrito
esse livro. Hoje fá-lo-ia mais completo. Os outros livros (romances, novelas e
contos) são histórias que aconteceram ou que podiam ter acontecido. Acho que a
ficção é um jogo de possíveis, mas a minha profissão não influenciou em nada a
minha vocação de escritora. Os arquivistas, geralmente, não são historiadores.
Mas se há no que escrevo um carácter histórico, isso é uma propensão natural.
Mas reconhece que a leitura de alguns dos seus livros nos ajudam a conhecer
instituições (a escola, por exemplo) e a entender as relações pessoais e
sociais de uma época.
Penso que isso se passa com todos os escritores. Há uma parte de nós que
não é nossa, é a da sociedade em que vivemos, e que está inserida na literatura
que fazemos. Nós vivemos numa época, somos influenciados por ela e isso
reflecte-se na nossa obra.
Em Horas Vivas, o seu primeiro livro (1952), com as vivências de uma
menina entre os 7 e os 10 anos, dá-nos uma ideia de como era a escola daqueles
tempos, na província.
Um pouco. Reflecte aquele ambiente, nessa altura eu vivia na Beira Alta,
fiz lá a maior parte da instrução primária. Ainda ontem acabei de ler um livro
que se passa na Beira Alta e tem exactamente aquilo a que eu assisti. Os miúdos
muito pobrezinhos que faziam quilómetros a pé para chegarem à escola, descalços
ou de tamancos. Chegavam roxos de frio... Há uma série de notas que reflectem
todo esse meio. Era quase medieval.
Quando escreveu as Memórias da Escola Antiga (1981) não usou a ficção.
Nas Horas Vivas também não usei. Aí, o que há é muito da imaginação
de uma criança imaginativa. Mas não há ficção. Nas Memórias da Escola Antiga
procuro ser objectiva, tanto quanto possível, embora possa haver subjectividade
na minha maneira de ver o que se passava.
Nota-se na sua obra um manifesto interesse pela instituição escolar; é a
influência de quem viveu com um professor, metodólogo e investigador do ensino?
Não. O meu marido sempre me dissuadiu de ser professora, porque ele sabia
que era uma profissão esgotante, mal compensada. Não é bem uma preocupação com
a escola é antes uma preocupação com a vida; sou alguém que passou pela escola
e reflectiu sobre isso. Ainda hoje continuo a reflectir sobre isso embora não
pertença à escola, nem ao campo pedagógico. Não sou pedagoga, mas as notícias
sobre o que se passa nas escolas vistas através dos familiares, da televisão,
interessam-me na medida em que todo o social me preocupa intensamente.
O Regresso ao Caos (1960) também tem vários episódios sobre o ensino...
Esse livro é muito influenciado pela vida do meu falecido irmão, António
Alfredo, enquanto jovem. Ele era artista e uma pessoa extremamente livre e um
tanto desordenada na vida. Um grande trabalhador, teve grande influência na
cidade de Lisboa; trabalhava em publicidade, foi encenador, fez muitas montras,
decorações no paquete Infante D. Henrique, mas era tão desordenado no ponto de
vista profissional como sentimental. A sua obra ficou dispersa, esquecida e
obliterada, porque não guardava os seus testemunhos. Admirava-o porque ele se
movimentava muito livremente para fazer a sua vida artística, ao passo que eu,
casada, com uma filha e com a vida doméstica e a profissional, era, como dizia
o Torga, uma escritora à "sobreposse". Ele era o "caos" que eu admirava mas que
não podia viver, porque já estava metida num "cosmos" relativamente ordenado e
porque, por temperamento, sou muito arrumada e metódica.
Eça é um frustrado. E há muitas frustrações nos homens em Portugal
Reconhece então que a sua obra reflecte muito das experiências de vida.
Depois do 25 de Abril, os jornalistas e os críticos passaram a perguntar
descaradamente aos escritores "Ouça lá, isto é autobiográfico?" Eu acho que
isto é a transplantação do espírito de bisbilhotice de vizinha, para o
jornalismo. Não há escritor que possa afirmar que nas suas obras não haja
experiência vivida, mas não há só isso. O escritor, porque é imaginativo, ao
viver já está a ficcionar e ao ficcionar já está a viver. Entra no chamado jogo
dos possíveis: vemos vários caminhos, escolhe-se um deles que, depois, se
preenche com pequenas coisas da vida quotidiana, a nossa ou a dos outros. A
ficção é feita disso, da nossa vida, com as suas frustrações, os seus
projectos, sonhos, desejos, êxitos e malogros. Os nossos e os dos outros,
adivinhados ou sabidos.
No livro As Velhas Senhoras e outros contos (1992) confessa ter uma
atracção por temas como a loucura, as vivências infantis e juvenis.
É verdade. Tratei algumas vezes de psicopatias, como nos contos "Ao menos
um hipopótamo", "Clastomina", "Micolina", entre outros. Quanto às vivências
infantis e juvenis ainda não estão completamente "esgotadas". Mas não sei até
que ponto as poderei retomar porque o tempo vai passando e não sei quanto terei
ainda de vida. Por exemplo os "Cadernos de uma menina pensativa"...
Textos que saíram, em 1968, no Diário Popular...
Se eu publicar esse livro, "Cadernos de uma menina pensativa" fica como
subtítulo, mas vou talvez chamá-lo "Livro dos Arquétipos". Mas tenho de o
ampliar. Eu queria dar as vivências de uma criança através de uma linguagem que
não seja a do escritor que está a fazer estilo, mas que procure traduzir, no
discurso, a vivência infantil tal e qual se passa no espírito da criança. É
difícil, tem de se simplificar muito. Tornar simples o que é muito complexo. Eu
tinha o projecto de fazer um Curriculum Vitae, em vários volumes. O
terceiro seria umas "Memórias da função pública". Não sei se vou conseguir
fazer isso mas gostava. Nós temos projectos que nunca se realizam, porque vêm
outros que nos exigem mais ou porque a vida não deixa. A vida não nos deixa
fazer muitas coisas.
O outro grande tema...
A loucura. É curioso que, não sendo psicóloga de profissão, cheguei a
pensar em o ser, mas enfim, havia aquela necessidade de ter dinheiro ao fim do
mês... Ainda tirei um curso de testes psicológicos e cheguei a fazer um estágio
no Hospital de Santa Maria, na clínica psiquiátrica de mulheres. O director era
o Prof. Barahona Fernandes. Quando escrevi o conto "Ao menos um hipopótamo",
ofereci-lhe um exemplar e ele disse: "Gostei muito e está cientificamente
correcto". Acertei...
É mais do que "pontaria"... Mesmo ao abordar temas em que não se considera expert,
fá-lo com rigor e ciência. Quando analisou a educação, em Memórias da Escola
Antiga, aconteceu isso também.
Tenho certo espírito racionalista, metódico. Aliás, o Gaspar Simões dizia
que o romancista está mais perto do cientista que do poeta. Mas eu também tenho
poesia na minha prosa, suponho, e dizem-me.
A produção ficcional pode ser vista como uma boa fonte para se conhecer certas
realidades? Diz-se que os romancistas, algumas vezes, melhor que os pedagogos,
escrevem sobre educação e fazem melhores análises da sociedade do que os
sociólogos.
Às vezes também considero que sim, mesmo quando o sociólogo trabalha
cientificamente. Pelo menos o escritor é geralmente mais comunicativo.
É mais eficaz?
Sim, eu penso que pode ser. Há muito tipo de literatura em que isso
acontece, em particular quando o romancista procura inserir os seus problemas
nos da sociedade, atinge certos aspectos mais informativos.
Óscar Lopes & António José Saraiva no Dicionário da Literatura Portuguesa,
dizem que a Natália Nunes é "um dos mais típicos casos de revolta contra a
ética repressora da liberdade feminina burguesa."
Eu não sei se é revolta. Não é uma revolta explícita. Uma escritora ao
narrar certos casos e ao fazer introspecção, o que acontece muito na literatura
feminina, está, ainda que de uma forma não explícita, a reivindicar
implicitamente. E quase toda a literatura feminina é sobre temas femininos.
Vejo que as mulheres tratam sempre dos seus próprios problemas. Os homens
tratam dos homens e das mulheres, mas muitos continuam na literatura a ser
misógenos e anti-feministas. Um caso actual da nossa literatura, em que há um
homem que tem uma nítida atitude de defesa das mulheres, é o Alçada Baptista.
Tem uma compreensão justa do que deviam ser as relações entre o homem e a
mulher, até quando essas relações não são regulares. Tem sensibilidade para
encarar essas relações.
Apesar de falar muito das mulheres, a Natália Nunes diz, em As Velhas Senhoras,
"os meus contos onde aparecem mulheres, são amargos. Aqueles onde aparecem
homens, amargos são".
É a condição humana. A frustração que se nota nas mulheres, também se nota
nos homens. O Coimbra Martins escreveu um excelente artigo sobre o Eros na
literatura portuguesa, na obra dos escritores desde o século XIX ao século XX;
nota-se que ele vai procurar as frustrações dos homens, e são muitas. O próprio
Eça é um frustrado. E há muitas frustrações nos homens em Portugal, por muitas
liberdades que eles tenham. Frustração não só erótica, mas ao nível social,
político, na nossa vida de pobreza. Ao longo dos séculos fomos sempre pobres
mas desperdiçadores; quando tivemos alguma coisinha nas mãos desperdiçámo-la à
grande.
Numa entrevista ao jornal Expresso, em Junho de 1998, dizia "não sou nem
nunca fui política mas sempre defendi ideais sociais".
Na minha vida privada, o tema político está sempre presente, com uma tão
grande preocupação que chega à angústia, mas isso não o ponho explicitamente na
literatura.
|