Aproveitando, mais uma vez, o espaço desta coluna como forma de diálogo com
Luís Fernandes e Rui Tinoco, vimos agora agarrar as muito boas pistas deixadas
por ambos nas duas últimas crónicas e propor, em acréscimo e não como
mutuamente exclusivo, um olhar orientado a partir de um outro ponto de
observação: o Outro somos Nós.
Deste ponto de vista, o arrumador de carros que utiliza drogas é passível de, a
um tempo, se constituir numa figura perturbadora e, a outro, criativa.
Perturbadora, tendo agora em conta não exclusivamente a sua proveniência, mas o
movimento a que corresponde o acto de lhe darmos dinheiro. Inferindo
imediatamente onde o destinatário o vai gastar, há uma questão que pode agora
ser orientada na nossa direcção: porque lho damos? Logo de início e quando do
seu surgimento, a razão mais provável seria talvez a de evitar que o nosso
automóvel fosse danificado. Muito bem, mas e agora, porque lho damos?
À semelhança de outras pessoas que povoam a nossa cidade - e da mesma forma que
cada um de nós pode ser visto por aqueles com quem, sem serem propriamente
nossos conhecidos, nos cruzamos todos os dias - alguns desses arrumadores
incrustaram-se de tal forma no nosso quotidiano que é de facto difícil
responder por completo à segunda pergunta. É deste ponto de vista, e tendo
agora em conta as mudanças operadas na interacção com ele, que o arrumador é
passível de ser encarado também como uma figura criativa.
É verdade, o arrumador ocupa o espaço intersticial situado entre o lugar onde
deixamos o automóvel e o trajecto pedonal que lhe é imediatamente subsequente.
Mas, em simultâneo, e enquanto categoria que noz faz pensar, agir e criar o
mundo, a sua figura tem vindo a conseguir modificar a forma como nos
relacionamos com este tipo de junkie. É que, aos olhos de muitos de nós ele
trabalha. Trabalho construído num interstício - ambivalente, portanto - mas
trabalho. Arruma os carros e, reconheçamos, com uma eficiência que algumas
vezes nos é util. Damos-lhe algum dinheiro - pouco, já que convém não abusar -
mas a sua actividade já não nos surge como simples extorsão. Dito de outra
forma, ele tem sabido transformar a passagem de dinheiro para a sua mão numa
espécie de pagamento.
Se anda muitas vezes vestido com um aspecto andrajoso, é também frequente
encontrá-lo com algumas roupas menos usadas. A mistura de padrões estéticos faz
supor terem-lhe sido dadas por algum(s) dos ocupantes de um território urbano
que, desta forma, começamos a partilhar. Mesmo tratando-se de uma relação
assimétrica - facto que ele conhece e faz trabalhar em seu proveito - a verdade
é que tem vindo a tornar-se numa presença algo paradoxal: é uma espécie de
vizinho ambulante que nos acompanha pelos sítios onde trabalhamos, moramos e, à
noite, nos divertimos. Em alguns casos deixou mesmo de corresponder a um
estereótipo e já conseguimos percepcioná-lo como uma pessoa que está ali não
apenas como arrumador mas, também, como vizinho.
Na interacção do quotidiano, e sobre um espaço meramente geográfico, o
arrumador soube criar na cidade um espaço sociológico e simbólico que, connoso,
agora ocupa. Que fazer com ele? É que não serve de nada encontrar uma resposta
que se cinja, outra vez, a torná-lo invisível. Mais cedo que tarde,
eventualmente sob outra forma, ele tornará a mostrar-se. Se pararmos para
pensar um pouco, e levarmos em linha de conta a nossa experiência de interacção
comum, somos obrigados a reconhecer uma evidência: todos temos vindo a aprender
a viver em conjunto.
E agora - repetimos - que fazer com ele? Expulsá-lo? Convém não esquecer que,
ao fazê-lo, não se estará a resolver um "problema" num registo meramente
funcional. Mesmo que a solução encontrada nos pareça das mais suaves, ainda
assim estar-se-á a usar uma forma de violência simbólica sobre a qual se
reedita um já muito velho processo: ao criar um perigo exterior a que tem de
ser dado combate - e também aqui o arrumador pode ser encarado como metáfora -
acabaremos por nos transformar em inimigos de nós próprios.
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