"Um homem faz o que deve fazer - apesar das consequências pessoais, apesar
dos obstáculos, perigos e pressões - e é essa a base de toda a moralidade
humana"
John F. Kennedy
Conheci o Miguel num congresso de professores tão fraterno e participado como
há muito não via. Este exímio contador de histórias falou de um navio à deriva,
cuja tripulação adoecera por falta de água potável. O telegrafista lançava sucessivos
apelos: "S.O.S., precisamos de água!... S.O.S., precisamos de água!"
Até que um outro navio lhe respondeu: "Enchei os tanques com água!" Sequioso
e angustiado, o telegrafista repetiu o lancinante apelo: "S.O.S., precisamos
de água!" Então, a tripulação do outro navio completou a mensagem: "Enchei
os tanques com água!... Estais a navegar em água doce."
Enquanto o Miguel aludia metaforicamente aos que adoptaram o manual da sobrevivência
digna - o manual dos que sabem que navegar é preciso e dos que não se
deixam morrer de sede à beira da água - dei por mim a evocar viajantes solidários
que, numa certa escola, navegam o sonho de ajudar as crianças a serem pessoas
mais sábias e felizes. Quase a desembarcar num porto de saudade, estou convicto
de que a viagem valeu a pena. E de que a nova tripulação há-de manter o rumo,
há-de segurar o leme, sempre que os ventos não soprem de feição.
Os novos navegantes protegem as crianças do naufrágio nas marés da ignorância.
Ajudam-nas a decifrar o ABC da guerra e da paz. Na Geografia, as crianças aprendem
que a palavra "assassínio" tanto pode ser escrita com um A de
Afeganistão como com um A de América. Na Língua Inglesa, as crianças
aprenderam que o adjectivo "bad" pode ser escrito com um b de
Bin Laden, mas também com um b de Bush. E, num re-ligare curricular
essencial, as crianças aprendem que a palavra "cultura" começa com um c
de Cristo e de Corão. (Subitamente, percebi que tenho no computador um autocorrector
fundamentalista. Não reagiu ao termo Cristo. Mas, logo que digitei a palavra
Corão, sublinhou-a a vermelho.)
Vivemos tempos sombrios, tempos de intolerância, de "fundamentalismos". Aproveitando
marés de ignorância e despeito, os "fundamentalistas" do dito "ensino tradicional"
retomam as tentativas de assassinar o sonho. Atiram-se com inquisitorial fúria
contra o que não conseguem entender, mas que os perturba.
Em tempos sombrios, a sanha "fundamentalista" encontra eco numa certa comunicação
social sedenta de escândalos e que dá guarida a processos de difamação. Sempre
foi assim. Os projectos estão sujeitos à erosão do tempo e das conjunturas.
Desde que me lembro de ser professor, assisti a dois ciclos de ignomínia e confusão.
E, como não há duas sem três...
Os adeptos do chamado ensino "tradicional" ainda não terão entendido que há
mais que um modo de aprender e ensinar? Ainda não perceberam que, se do Médio
Oriente à América do Sul, a intolerância, a guerra e a fome assassinam milhões
de Einsteins de tenra idade, no mundo dito civilizado, a Escola mata prematuramente
outros tantos? Ainda haverá quem insista em estéreis processo de adestramento
cognitivo, no acumular de aprendizagens desconexas e abstractas coladas com
cuspe e mnemónicas? Ainda haverá quem transforme o acto educativo numa corrida
de obstáculos vencida à força de copianço nos testes e da parasitagem de "trabalhos
de grupo"?
Sabemos ao que nos conduziu um ensino "tradicional" unicamente centrado no ensino
da Língua e na Matemática. As escolas "tradicionais" (quase todas?!) já nem
os programas de Língua Portuguesa e Matemática ensinam. O modelo moral da escola
dita "tradicional" aliena o aluno e produz efeitos negativos na personalidade
e no desenvolvimento das crianças. Mas a falência do modelo não significa que
seja necessário o seu total abandono. O "tradicional" tem as suas virtudes.
Não se poderá descurar, por exemplo, o papel da repetição e da memória. Nem
se estabeleça falsas dicotomias entre "tradicional e moderno", entre "conservador
e inovador", pois o "aprender a ler, escrever e contar" não é incompatível com
o aprender a pensar, com o aprender a ser, nem com o aprender a aprender os
outros.
Alguém escreveu (não me lembro onde li...) que os engenheiros que conceberam
as câmaras de gás e os médicos que coordenavam o genocídio nos campos da morte
nazis andaram na escola "tradicional" e foram "bons alunos". Acrescentaria que
Milosevic e Le Pen também por lá andaram e que Hitler aprendeu a ler, escrever
e contar. Janusz Korszak, que foi professor e pereceu nas garras da besta nazi,
escreveu: "a escola é um pobre comércio de medos e ameaças, boutique de bugigangas
morais, botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde
e entorpece." Se não tivesse acabado os seus dias num campo de extermínio,
se lhe fosse concedido chegar aos nossos dias, não precisaria de retirar sequer
uma vírgula à sua frase, para que ela se mantivesse actual.
Em tempos sombrios, como os de hoje, os "fundamentalistas" da escola "tradicional"
(os que não admitem mais do que um modo de fazer escola) suspendem a hibernação
de tempos luminosos e revelam o seu ódio à diferença. Aqueles que, no seu tempo,
se aperceberam do cheiro nauseabundo da decomposição da escola "tradicional"
e ousaram reinventá-la acabaram vítimas da ignorância e da maldade. Pestalozzi
foi humilhado. Tolstoi assistiu impotente ao encerramento da sua escola, por
ordem do czar. Ferrer, que acreditava ser possível colocar humanidade no acto
de aprender e ensinar, foi perseguido e executado no dealbar do século XX. O
Estado Novo não partilhava dos ideais da Escola Oficina, e Adolfo Lima conheceu
as agruras do Tarrafal. A lista é extensa e o drama continua. Para que conste,
neste cantinho da Europa Comunitária do século XXI, a "caça às bruxas" continua.
Aires Gameiro diz-nos que "só os inconformistas com poder criador ajudam,
em cada época, a quebrar algemas da sociedade, injustiças e cegueiras, que não
deixam ver os outros como pessoas". Mas são raríssimos os que se arriscam
no submundo das escolas e salas de aula onde a mudança necessária se processa,
porque a mediocridade e a maledicência espreitam em cada esquina e o seguro
morreu de velho...
Nos tempos sombrios que atravessamos, deveria ser atribuído um subsídio de risco
aos professores que arrisquem defrontar o "fundamentalismo". Nos tempos sombrios
que se adivinham, deveria ser instituído um santinho padroeiro que protegesse
as escolas com aspirações de mudança das investidas dos seus detractores.
Aquando da primeira apresentação da Nona Sinfonia de Beethoven, os "tradicionalistas"
chamaram "aberração" ao último dos seus andamentos. O "inovador" trecho que
hoje é conhecido como "Hino da Alegria" - e que abriria caminho às "inovações"
de Mahler - foi repetidamente censurado. Nesses tempos sombrios, os detractores
do génio opunham-se a que se cantasse que "o Homem é para todo o Homem um
irmão" e que "a alegria é a filha querida dos deuses". Mas, como
diria o Rubem, se o optimismo é da natureza do tempo e a esperança é da natureza
da eternidade, sejamos esperançosos, saibamos resistir. Atrás de tempos sombrios
tempos claros hão-de vir.
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