No derradeiro voo recordei que na viagem de sentido inverso, descendo a África
a caminho de Moçambique, falava de uma mudança de vida.
Hoje, vivido esse tempo africano, percebo que mudar, no sentido limite do termo,
teria sido passar a "indígena". Deixar tudo para trás ficando em Mandlakazi,
como me propôs o velho Gani, e aí arranjar uma ocupação, certamente um negócio.
Enleio-me nas suas palavras gentis e sinceras: "Agora já é conhecido, tem muitos
amigos, vamos todos ter saudades. Podia ficar connosco." Parti, trazendo comigo
as cicatrizes desse tempo intensamente vivido. Mudei muito? Está demasiado próximo
para responder, mas os sintomas anunciam-se fortes.
De novo instalado no meu "mundo", vivi durante as primeiras semanas a experiência
"antropológica" de me sentir estranho em casa. Tive de recuperar as rotinas,
os comportamentos e a localização espacial de muitos dos meus objectos que o
afastamento durante tanto tempo parecia ter apagado da memória, de refazer as
relações pessoais temporariamente interrompidas, de retomar o contacto com aqueles
que me estão mais próximos. Inevitavelmente, lá vinha a pergunta: "Então, gostaste
de Moçambique?"
Fico sempre em apuros para responder. Sim e não. Experiência extraordinária,
lembro já com alguma saudade aqueles que se tornaram próximos. Em Mandlakazi
os que aceitaram franquear a sua intimidade e os seus pensamentos ao escrutínio
da minha curiosidade que, por pudor e prudência, designamos por científica.
Em Maputo as amizades que, moldadas na crítica implacável ao nosso quotidiano
desencantado, não me regatearam lições sobre a vida recente de Moçambique. E
ainda os belos recantos visitados nas curtas escapadas empreendidas durante
a minha permanência no país: Vilankulos e a sua bela praia tropical a perder
de vista; a cosmopolita praia do Tofo que obriga a uma passagem pela cidade
de Inhambane, onde a antiga presença colonial se deixa denunciar em muitas das
suas ruas e edifícios. Saltando para o outro lado, inquieta-me o sofrimento,
quase sempre materializado em mortes anunciadas e inúteis: de sida, de cólera,
de malária, sabe-se lá de quê, recebidas com resignação pois por ali parece
fazer todo o sentido dizer que sempre se tem que morrer de alguma coisa. Desassossega-me
a impotência, sentida na carne e na alma, dos poucos que ainda lutam por algo
humanamente desejável em lugar de, fazendo como todos os outros, se adaptarem
a viver num país transformando em território de rapina do neoliberalismo em
nome dessa coisa chamada "ajustamento estrutural". A sensação insuportável de
que não há esperança.
Mas como nada está na história antecipadamente escrito, a vida continua e com
ela a luta por um outro mundo, também em Moçambique, mesmo que tenha de ser
travada contra aqueles que em tempos a proclamaram bem alto. Porque as palavras
pertencem, quando enunciadas, a todos os que neles calam fundo, é tempo de avisar
brancos e pretos, poderosos e fracos, arautos e ouvintes, o próprio Kalungano
que
é a voz longa de Xangana
filho pobre de terra rica
que vem cantando vem gritando
Ó sol do meu país
Ó sol de Moçambique
filho esquecido nasci pobre
sobre a terra de meus pais
Baila ó sol do meu país
baila sobre a terra
de mangueiras e cajueiros
do alto das copas verdes
de novo eu serei rei.
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