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Carta para Clarissa

Olho para a janela e lembro-me de ti. "Só agora acredito que a Primavera chegou", murmuro, tal como o teu amigo Amaro, olhando-te, a brincar sob os pessegueiros, junto das glicínias roxas que espiavam por cima do muro do jardim. Quando o ar se enche dos cheiros da Primavera, lembro-me sempre de ti. E todas as meninas de fitas no cabelo, caminhando entre os canteiros dos jardins, têm o teu rosto. O rosto que eu construí ao longo destes anos todos - adolescente, luminoso, claro. O rosto que têm sempre as amigas perfeitas que nos acompanham a vida inteira.
E tu foste a mais perfeita das amigas. No casarão da minha infância, de janelas fechadas para que o sol não estragasse a mobília, com o chão a ranger noite dentro, sob os passos candenciados da tia Irene (que sofria de insónias), tu eras a certeza de que a vida podia ser outra coisa. Desde o dia que te conheci eu percebi que, para lá da escuridão e dos corredores intermináveis da casa, havia mundos diferentes, com jardins onde se podia correr, música vinda sabia-se lá donde, a brisa a invadir o nosso corpo, e mães que prometiam às filhas: "quando tiveres catorze anos, dou-te licença para usares sapatos de salto alto."
Eu era então muito pequena, e as tias admiravam-se de me ver tão interessada naquele livro enorme, sem bonecos, que se calhar até era de alguma delas: as tias tinham muitos livros mas, diziam, ler faz muito mal aos olhos e, além disso, tratar de uma casa dá muito trabalho e não há tempo para distracções.
Naquele livro estavas tu. E o teu amigo Amaro, e o menino na cadeira de rodas, e as cantigas de Nestor, as risadas de Nico Pombo, os filmes de Gary Cooper e de Jean Harlow, e a tia Zina, e as discussões dos habitantes das pensão - e sobretudo aquela paixão pela vida que rebentava das palavras todas.
Nessas páginas te encontrei, e foi contigo que aprendi que, mesmo em casarões escuros e no meio de gente com medo do sol, é sempre preciso acreditar que a claridade é mais forte, que a felicidade é possível, mesmo que se construa apenas com o cheiro dos jardins, meninas de cabelo a esvoaçar ao vento, música triste a sair das casas, pessoas que não conhecemos e nos sorriem pela manhã, as vidinhas banais de quem passa a nosso lado, e a voz das mães estendendo-se ao fim da tarde pelas ruas, chamando os filhos porque são horas de jantar.
E foi contigo que descobri que a vida parece sempre melhor de manhã, com sol, vento fresco e céu azul. Se possível com gente que acabou de acordar e se debruça da janela e nos deseja um bom dia. Penso que seríamos todos mais felizes se os nossos dias começassem dessa maneira.
Ensinaste-me a ser adolescente - e a sobreviver. Anos depois, ensinaste a minha filha. Tens ensinado muitas das minhas amigas adolescentes que, através de mim, te conhecem. Daqui a meia dúzia de anos espero que ensines a minha neta - que já está à tua espera.
Acho que nunca te agradeci devidamente tudo o que fizeste por mim. Nem a ti nem a quem te deu vida e palavras: o escritor brasileiro Érico Veríssimo, no tempo em que do Brasil nos chegava a grande literatura e não as telenovelas.
Acho que nunca te agradeci não apenas o teres-me ajudado a sobreviver a uma infância complicada e solitária, mas sobretudo o teres ensinado a todos os que te conheceram que, bem lá no fundo, a adolescência é sempre igual - seja nos anos quarenta, seja no ano dois mil. Pode o exterior mudar, podem usar gangas rasgadas, tatuagens nos braços, mangas até aos joelhos, calças a cair pelas pernas abaixo, pérolas no umbigo, cabelos às madeixas roxas e verdes, piercings na língua, vocabulário cabalístico, telemóvel colado à orelha - lá por dentro têm os mesmos medos, as mesmas inseguranças, as mesmas angústias, os mesmos (incofessavelmente românticos) sonhos.
O pior de tudo é que hoje ninguém te encontra em Portugal. "Clarissa"?, espantam-se os editores, "está esgotado há uma data de anos e ninguém edita agora." Socorro-me de amigos brasileiros, de algumas idas ao Brasil, e lá vou trazendo alguns exemplares (no Brasil há edições lindíssimas com a tua história). Mas tenho muita pena que tenhas desaparecido das nossas vidas, sobretudo neste momento complicado em que, tenho a certeza, irias fazer muito bem aos meus amigos mais novos.
Se eu mandasse, tu serias leitura obrigatória nas escolas.
E tenho cá uma fé de que muita coisa seria diferente.
Volta depressa! Fazes muita falta.


  
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Alice Vieira
Escritora
Alice Vieira
Escritora

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