OFNIs são "objectos faladores (ainda) não identificados" - mas identificáveis.
São, quase sempre, objectos idênticos às palavras e frases que empregamos. Mas
só na aparência, porque os seus efeitos são bem diferentes. De uma forma geral,
os OFNIs turvam a clareza do nosso pensamento, corrompem a sua expressão e prejudicam
o entendimento até das coisas mais simples. Desta forma, assemelham-se aos "vírus"
e "vermes" informáticos, eles também produzidos a partir da "linguagem" que
serve para construir programas viáveis, mas utilizada para corromper a sua informação.
Considerarei apenas os OFNIs que se podem avistar do observatório a que todos
temos acesso livre: o idioma português. Para facilitar a sua identificação e
fixar ideias, proponho-me dividi-los em estirpes, com nomes que façam justiça
ao seu modo habitual de comportamento, como, por exemplo, BRUTUGUÊS.
OFNIOLOGIA
Como se depreende do antecedente, os OFNIs não têm origem extra-terrestre
nem extra-humana, não são portadores de verdades preternaturais nem aparecem
em lugares ermos onde só alguns sortudos os conseguem avistar. Bem pelo contrário,
são tudo o que há de mais trivial. Os OFNIs andam por aí, de boca-em-boca, numa
roda viva, porque são criados por nós - é verdade, no melhor pano cai a nódoa
- não intencionalmente, porém, porque não há nenhuma malevolência deliberada
neste processo (ao contrário do que sucede com a criação de vírus e vermes informáticos).
Nem poderia haver, já que se trata de um processo INCONSCIENTE. Criamos OFNIs,
ao falar e ao escrever, com a mesma naturalidade com que sonhamos. Mas todos
sabemos que há sonhos e sonhos. O Português está para o Brutuguês como o sonhos
ditos normais estão para os chamados "pesadelos". Eis um exemplo dessa diferença.
SUCESSO destrona ÊXITO
Consideremos a palavra SUCESSO. Significa aquilo que aconteceu,
acontecimento, facto resultante de um empreendimento. A sua génese psíquica
envolve, como pano de fundo, a ideia de série ordenada de instantes, mais saliente
no verbo e substantivo cognatos SUCEDER e SUCEDIMENTO. Este último tem pares
em Trás-os-Montes e nas Beiras, onde "sucesso" se diz respectivamente (desconheço
com que frequência) SUCEDO(Ê) ou SUCEDENHO, a fazer fé no "Grande Dicionário
da Língua Portuguesa" de J. P. Machado.
Isto em Português. Em Brutuguês, o caso muda de figura. SUCESSO
passa a ser sinónimo de ÊXITO, a conclusão feliz ou "bem sucedida" de um empreendimento.
Pelo buraco aberto por este OFNI na delicada tessitura do idioma eis que o nosso
pensamento se precipita, vezes sem conta, num torvelinho de consequências desastrosas.
A primeira consequência é tornar obsoleta a palavra ÊXITO, remetendo-a para
o museu das velharias semânticas. A segunda consequência é apagar a diferença
entre um empreendimento humano e a sua conclusão - imprevisível porque bipolar
(êxito OU malogro) - que passa a ser, por decreto, previsível: "sucesso=êxito".
A terceira (e a mais viciosa) é aceitar como natural uma escatologia do "sucesso"
baseada no filosofema "sucesso significa ocupar espaço".
ESCATOLOGIA DO SUCESSO
Por esta altura já deverá ser evidente que frases como "Portugal,
um país de sucesso" ou "a canção X tem sido um sucesso" só são entendiveis se
nos dispusermos a ver nelas não frases portuguesas mas frases brutuguesas, onde
"sucesso" ocupou o espaço de "êxito". Deixo aos leitores a tarefa de procurar
exemplos das desventuras da palavra ÊXITO, certo de que encontrarão muitos.
Volto à 3ª consequência. O filosofema "sucesso é ocupar espaço"
nasceu na gíria militar, onde "sucesso" significa, desde há muito, "conquista
de posição de relevo ao inimigo". Os guerreiros não costumam primar por aquilo
que Pascal denominava "finura de análise" (esprit de finesse), sendo mais propensos
a um certo "modo geométrico de pensar" (esprit de géometrie) que alguns observadores
mais mordazes qualificam de "obtuso" ou "quadrado". Sendo assim, não surpreende
que este OFNI tenha nascido nesse grupo. O que surpreende é a velocidade com
que ele foi invadindo todas as àreas do discurso. Mais surpreendente ainda é
verificar que ele domina o modo de falar acerca da instituição que se poderia
presumir ser o último refúgio da aliança entre a "finura de análise" e o "modo
geométrico de análise": a escola. Pois como os leitores se poderão dar conta,
em Brutuguês não se fala do êxito que pode ter o ensino proporcionado pela escola,
mas tão só do acontecimento, do sucesso, que resulta de nela existirem pessoas
que empreendem ensinar e aprender.
Tinha a sensação que esta espantosa adulteração de significados
era muito recente. E lembrei-me de consultar o texto da Constituição da República
para o verificar. Não me enganei. O número 1 do artigo 74 (Ensino) reza assim:
"Todos têm direito ao ensino com garantia de igualdade de oportunidades de acesso
e êxito escolar". Reparem: "acesso e ÊXITO escolar", não "acesso e SUCESSO escolar".
Este enunciado, introduzido em 1982, permaneceu intacto até hoje. Sendo assim,
nada está perdido. O Brutuguês ainda não fez estragos irremediáveis.
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