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O Darwinismo do discurso e da conversação

"A conversação é como jogar ténis com uma bola feita de uma matéria especial que, de cada vez que passa por cima da rede, muda de forma" In Lodge, D. (1993), O mundo é pequeno.

Neste reinício dos meus apontamentos, gostaria de fazer uma pequena incursão a uma competência mental e social do homo sapiens sapiens: a sua prática discursiva e conversacional.
Como todos sabem, nós somos seres eminentemente discursivos e conversacionais. Isto significa que dentro dos nossos vários movimentos de expressão utilizamos sequências de símbolos ou de sons que interpretam e que criam a nossa vida interior e a nossa relação com o mundo. Tanto o discurso como a conversação constituem o "jogo" de eleição, o "jogo natural", no combate pela nossa expressão e viabilidade. E é pelo facto de jogarmos este jogo, com as poderosas armas da linguagem, que se considera que somos seres com enormes vantagens evolutivas relativamente a outros animais. Somos capazes, por exemplo, de recordar, reflectir, antecipar, projectar. Gostaria a este propósito de falar de dois traços desta nossa condição que nem sempre são claros e nem sempre se crê que existam: o primeiro prende-se com a natureza profunda de combate que é o próprio acto de discurso e a própria conversação. O segundo prende-se com a natureza obscura, camuflada e retórica que todo o discurso constitui. Estes dois traços parecem-me indissociáveis sendo que o primeiro contrasta com uma teoria moral e o segundo com uma teoria sobre a verdade que habitualmente sustentamos.
Com frequência queremos olhar o conteúdo do discurso como elemento central da compreensão e do conhecimento de alguém, sobretudo nas suas dimensões morais para, assim, podermos aferir da confiança ou desconfiança com que poderemos estar numa relação. Ora, embora para nós, instrumentos mentais ou sociais como o discurso e o diálogo nos coloquem na linha da frente da evolução das espécies isso não prova que esses processos discursivos se coadunem com as dimensões morais em que mais acreditamos e que a nossa civilização veícula de forma predominante. Ou seja, a evolução humana e a moral não se comportam como duas linhas paralelas sendo que não é pelo facto de utilizarmos instrumentos que nos colocam no topo da evolução que deixamos de poder apresentar traços morais imensamente ou mesmo basicamente primitivos. Por outro lado, as palavras e o discurso não pertencem aos limites de um indivíduo. São, ao invés, como pássaros à solta, que os "combatentes" mais criativos apanham em pleno voo para traçarem trajectórias mais combativas e sedutoras para si próprios e para os outros. Mas isto não tem a ver com moral. Terá mais a ver com estética e com o poder que esta transporta para a sobrevivência.
O segundo ponto tem a ver com a relação entre o discurso e a verdade. Acreditamos, com frequência, que o discurso espelhará a verdade, a essência mais íntima e profunda da natureza das pessoas. No entanto, o valor que podemos dar aos discursos é, em geral, muito pouco quando comparado com os problemas que cada discurso só por si levanta e, sobretudo, quando comparado com o próprio comportamento. As coisas deixam de ser o que parecem logo após serem ditas, escritas e muito mais após serem ouvidas ou lidas. Cada palavra, cada frase ou cada ideia é apenas um pequeno lance no complexo xadrez da verdade e onde o que mais conta frequentemente é apenas o próprio lance, o próprio acto discursivo enquanto movimento de expressão e de significação num certo momento e num certo espaço.
Esta tensão que todo o discurso encerra, entre a a moral e a verdade por um lado e os mecanismos básicos de sobrevivência por outro não deveria ser tão extensamente ignorada pelas teorias e práticas da educação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

José Ferreira Alves
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
José Ferreira Alves
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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