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Hipocrisia

Em Portugal continuam a coexistir problemas dos países centrais com problemas dos países periféricos. Aqui há sempre qualquer coisa a separar o povo do pão com manteiga. Ora foi o pão que não levedou, ora o leite que azedou. Ora é urgente pensar, ora é preciso repensar o pensamento. Umas vezes é preciso ouvir o povo, outras não se avança sem primeiro o educar. Pela manhã nascem ânsias de fazer leis novas, de tarde já é imperioso reformá-las. À Terça feira é preciso investir, à Quarta diminuir o orçamento. À semana rouba-se silenciosamente o salário, ao Domingo canta-se na missa. Adiados, sempre adiados esperamos lentamente que o tempo escorra e seja ele a autonomizar a civilização da barbárie. A impor o sim ou não, a afastar-nos do mais ou menos.
É como se aqui, nesta terra luminosa, o desejo de viver tivesse sempre de ser contido. Como se fossemos parados pelo enorme peso do dever de fazer o que nunca foi feito. E não é feito. Como se estivéssemos condenados à paralisia, ao falatório, ás promessas vazias, ao faz de conta, ao mais ou menos, ao fingimento, à hipocrisia, à vidinha que resulta da incúria, da inércia ou do modo bárbaro de continuar a entender o direito à vida. Aqui vive-se de adiar a vida.
Vivemos também aqui uma justiça que recusando centrar-se nas pessoas e saber delas o direito e o prazer de viver, vive preguiçosamente deitada no tempo e na poeira dos tribunais. Justiça injusta. As mulheres julgadas no tribunal da Maia, obrigadas ao cabresto do preconceito e da ignorância, à burka invisível, humilhadas, julgadas por uma concepção bárbara da vida, são mais dezassete vitimas da nossa inércia, da nossa incúria, da hipocrisia e da barbárie que domina ainda as nossas vidas. Em protesto apetece chorar.


  
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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