As minhas incursões pelos pedaços mil de Mandlakazi, transitoriamente
sentida como a "minha terra", permitiram-me descobrir uma luta em curso que
trespassa, praticamente sem distinção, todas as classes sociais: a luta pelo
saber na escola. Esta é, sublinhe-se, um lugar desejado e namorado por todas
as crianças e jovens, algo tanto mais surpreendente quando sabemos que a escola,
enquanto instituição de transmissão e aprendizagem de conhecimentos, é coisa
recente nas sociedades africanas.
Senhor de uma rara elegância intelectual, o velho Moisés, meu informante-chave,
parceiro de conversas sem pressas no escritório da velha fábrica de caju liquidada
pela acção articulada do Banco Mundial e do Governo moçambicano, ajudou-me a
compreender o lugar da educação e da escola na sociedade moçambicana contemporânea.
Falando do seu passado familiar, lembrou-me que "antigamente, no tempo dos avós
e até dos pais, bastava comer bem, dormir bem, não passar fome nem frio para
não se ser pobre. A criança ia muito cedo com a mãe até à 'machamba', ora para
plantar mandioca, milho e amendoim, ora para apanhar feijão-nhemba, caju e mafurra.
Não havia mais nada para fazer nem, tão pouco, para pensar. Hoje já não é assim."
O colonialismo primeiro, depois o projecto revolucionário nacional-popular de
inspiração socialista, agora a restauração capitalista na sua versão mais selvagem,
transformaram profundamente as formas de reprodução social e o papel desempenhado
neste processo pelas diversas instituições inventadas pelas sociedades humanas.
No caso concreto da escola, esta é hoje um campo relevante e praticamente incontornável
na luta pela classificação social, no qual os mais despossuídos encontram uma
janela, tanto mais pequena quanto menos recursos podem mobilizar, para ascenderem
socialmente. Como em qualquer outro campo, na instituição escolar moçambicana
jogam-se as profundas contradições sociais e fazem-se sentir as terríveis misérias
e perversões que afectam as sociedades periféricas. As boas notas e as passagens
de ano pagas com dinheiro ou, quando se é rapariga-mulher, com o corpo, a utilização
das crianças-alunos pelos professores nas suas machambas, o uso do capital económico,
político ou outro por parte dos alunos e dos pais que o possuem para condicionar
a liberdade de julgamento dos professores são práticas sociais naturalizadas.
Mergulhado em Mandlakazi, num lugar igual a tantos outros do "vale de lágrimas
da periferia do mundo", como me escreveu, de Maputo, uma querida colega e amiga
viciada na dissidência, percebi que a escola neste lado do mundo é um mundo,
o mundo onde se dá continuidade, segundo as suas regras, à aprendizagem da luta
pela sobrevivência baseada nos princípios predadores do neoliberalismo. Com
uma velocidade estonteante - o que são dez, quanto muito quinze anos na vida
de um povo? -, este esbateu na memória colectiva o projecto educativo levado
a cabo pela revolução moçambicana, deixando apenas, qual testemunho arqueológico
elevado à condição de absurdo patológico, os manuais onde os alunos fazem a
aprendizagem funcional da história, da geografia e da língua.
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