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Diz-me o que consomes, dir-te-ei quem manda

A primeira coisa que se espera de um antropólogo é que ele faça sempre referência a povos e práticas exóticas. Para não defraudar esta expectativa, esta crónica falará dos Barasana, nome de um grupo de índios de língua Tucano vivendo no noroeste da Amazónia, na fronteira entre a Colômbia e o Brasil. Retomar-se-á também o tema da racionalidade, em boa hora introduzido por Luís Fernandes na crónica anterior.
Os homens Barasana fumam e inalam tabaco e bebem cerveja e yagé, nome dado a uma bebida alucinogénea feita a partir da casca de uma planta trepadeira muito comum em toda a amazónia. Para além disso, ingerem também um preparado feito à base da coca, planta que apresentam como encerrando uma característica particular: constitui um indutor de boa comunicação. Assim, e no quotidiano, a coca é consumida durante o dia de trabalho, induzindo a comunicação entre os homens de uma mesma unidade de povoamento (maloca), para, à noite, o fazer também entre estes e o mundo dos espíritos, nomeadamente os dos seus antepassados. É do contacto com estes últimos, aliás, que surge a autoridade dos homens adultos na condução do destino de todos. Trocada entre os séniores de diferentes malocas, é também consumida durante as danças rituais periódicas que agregam os homens entre cujos grupos de origem foi estabelecida uma relação de aliança.
Para este povo, a coca constitui-se como produto cuja circulação e consumo reflete e refunda a complexidade do seu quotidiano. Ao contrário da coca, colhida, preparada e ingerida apenas por homens na companhia de outros homens, os alimentos, ainda que confeccionados apenas pelas mulheres, são comidos em conjunto por todos. Fazendo apelo a um esforço comparativo e lembrando quanto do esforço e organização do nosso próprio quotidiano devem à separação que fazemos entre a vida familiar e a do trabalho, será fácil imaginar como a separação cuidadosa que os Barasana fazem entre o domínio alimentar e o da coca está na base de muitas pequenas decisões que dão forma ao seu dia-a-dia.
Incorporada nos gestos deste dia-a-dia e "naturalizada" por eles, tal separação é passível de remeter para uma dimensão que já adivinhávamos: a forma como os Barasana organizam o seu sistema político. Este tornar-se-á ainda mais claro se dissermos que cada grupo detém pelo menos uma variedade específica do preparado de coca, legado que constitui, com as plantas que lhe estão na origem, uma parte importante do património herdado por cada geração. Ou seja, ainda que elemento que se inscreve na identidade do grupo, a coca é apropriada apenas pelos homens, que nela constroem a legitimidade necessária ao exercício do seu poder. Ao contrário do que acontece entre nós, é na exclusão dos circuitos relativos à produção, circulação e consumo de um produto psicoactivo que é construída e mantida a marginalidade de uma parte do grupo.
Como quaisquer outras pessoas, e face aos problemas que enfrentam, os Barasana pensam. Como quaisquer outras pessoas, os Barasana fazem a sua vida, preocupando-se com muitas das coisas que, aqui, nos ocupam a todos, não havendo, lá como cá, ninguém a fazer uma ordem dos pensamentos do dia. É que simplesmente há problemas com cuja resolução parece não valer a pena preocuparem-se muito: eles, os antepassados, é que sabem. A razão daqueles que os consultam - os homens adultos - torna-se na aparência uma razão descarnada e intangível - a razão de todos.
Lá como cá, não existe uma razão pura.


  
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa
Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa

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