"Tinha já passado o 1º período do 4º ano, quando eu reparei
que as crianças praticamente nunca aplicavam a multiplicação para resolver problemas,
se os mesmos envolviam números decimais. (...)Conseguiam resolver os problemas
através de estratégias que o evitavam sempre. (...) Este tipo de processos,
pela criatividade e inteligência que revelavam, deixavam-me fascinada. Porém
a insistência neles e o sistemático não recurso à multiplicação deixavam-me
também preocupada. (...).
Resolvi repegar a questão através de novas estratégias. Embora o fizesse
com muita tranquilidade, as crianças perceberam que o assunto me preocupava.
Havia uns meses tínhamos decidido que, na 1ª quarta feira de cada mês, reserváramos
uma hora para fazer um debate sobre um tema sugerido pelas crianças. O tema
era proposto no Diário de Turma e sujeito à aprovação de todos. Foi com algum
espanto, que numa certa semana de Maio, vi aparecer a "Multiplicação com Números
Decimais" como tema proposto para o debate seguinte. Perguntei-me se haveria
conteúdo para tal. O relato que se segue mostra que sim.
O Debate (...)
Andreia - É assim: Eu baralho-me e por isso evito utilizar a multiplicação
quando se trata de números decimais. Não consigo perceber porque é que me
baralho, mas baralho.
Liliana - Eu também. É a questão da vírgula, como as casas andam, como
as casas não andam. (...)
Marcos - A mim faz-me confusão andar para trás com os números.
Miguel - Eu acho que não é nada disso. Eu não uso a multiplicação
com decimais mas não é por isso. (...). Até porque a professora já há uns
tempos ensinou o truque e portanto quem quiser já não anda para trás com os
números.
Eu - Também me quer parecer que não é por isso. Até porque
algumas vezes treinamos a multiplicação com números decimais. E vocês nesses
treinos tinham dificuldades ?
Vários - Não.
(...)
Miguel - A minha confusão é esta: Dantes quando eu multiplicava,
o número dava-me sempre maior. (...) Agora, quando eu multiplico décimas dá-me
o resultado mais pequeno. Eu olho pró resultado e julgo que não pode ser.
Então para evitar isso, não uso a multiplicação quando tenho décimas. Não
sei nunca quando está certo.
(...)
Marcos - Pois. Tenho 5, não é ? Multiplico por 0,4 fico logo com 2
unidades. É esquisito.
Joana - (...) A subtracção dá sempre um número mais pequeno, com números
decimais ou não. A multiplicação dá-nos às vezes números mais pequenos. Se
fosse sempre, até não havia problema. (...)
Catarina - Com os números decimais é tudo ao contrário. Multiplicamos e dá-nos
menos. Dividimos e dá-nos mais. É tudo ao contrário.
(...)
Eu - Bom. Eu julgava que isso estava bem percebido. Trabalhámos com
tantos materiais: Com o MAB, com aquelas folhas de papel com centésimas e
décimas. Dividimo-las. Mas se não está percebido então vamos trabalhar tudo
outra vez desde o princípio.
Alguns (muitos) - Ai eu cá por mim não preciso.
Eu - Bem, mas eu acho que os debates são para nos fazerem avançar,
e eu já ouvi uma coisa sobre a qual acho que nós devíamos parar um bocadinho
e pensar todos. Acho que foi a Bá que disse que ela não usa a multiplicação
com decimais poque ela não é fixa. Que às vezes dá números maiores, outras
dá números menores. Então a pergunta que eu faço é esta: A multiplicação não
é fixa, mas não tem regras ? (...)"
Manuela Castro Neves
É difícil, perante o texto de Manuela Castro Neves, não evocar o relacionamento
problemático de muitos dos alunos portugueses com a Matemática. É difícil, também,
não nos perturbarmos com os discursos que circunscrevem a formação cívica a
uma área curricular restrita, indiferentes às vivências e às relações que as
crianças e os jovens usufruem quotidianamente nas escolas. É difícil, por fim,
não nos sentirmos compelidos a discutir o que este debate pressupõe sobre a
qualidade das actividades que se desenvolvem na sala de aula onde o mesmo ocorreu.
Daí que algumas questões tenham prevalecido na reflexão particular que entabulamos
a propósito do texto, as quais nos remetem, mais uma vez, para a discussão acerca
quer da relação entre o ensinar e o aprender, quer da relação entre o saber
sistematizado que se propõe através das disciplinas que compõem os programas
escolares e os saberes, as necessidades e a actividade académica dos alunos,
quer, finalmente, acerca da qualidade do rigor e da exigência escolares que
a experiência transcrita pressupõe.
Como é que alunos que frequentam o 4º ano de escolaridade foram capazes de estabelecer
um diálogo como aquele que o texto reproduz ? Quais as razões que o poderão
explicar ? Para que serve, afinal, a Matemática e quais as suas efectivas potencialidades
educativas ? Estas foram algumas das perguntas que colocamos a nós próprios,
entre outras menos pertinentes, e perante um universo mais vasto de questões
que, sabemos, ficaram por fazer.
Num país como o nosso onde o insucesso dos alunos na disciplina de Matemática
constitui um dos temas mais glosados e ciclicamente evocados para se demonstrar
a crise da educação escolar, não deixa de ser perturbante o confronto com o
texto de Manuela Castro Neves, o qual retiramos da Revista do Movimento da Escola
Moderna - Escola Moderna, nº 11, 5ª Série, 2001. Uma revista através da qual
os professores desse Movimento partilham experiências e reflexões num exercício
que visa dar corpo ao projecto de auto-formação cooperada que tem vindo a constituir
uma das imagens de marca daquele movimento pedagógico. O texto evocado não é,
por isso, um texto isolado. Comparticipa com outros textos do esforço de elucidação
de actividades pedagógicas através das quais se afirmam outras intenções e práticas
educativas que se caracterizam pela possibilidade de reconhecer a voz e o protagonismo
das crianças interagindo com um determinado património curricular e umas com
as outras, enquanto condição fundamental da sua aprendizagem. Intenções e práticas
educativas que pressupõem a existência de professores que constroem as suas
intervenções partindo do princípio que o saber não se dá, constrói-se de forma
singular como um exercício simultaneamente relacional e epistemológico. Não
foi por acaso, então, que a Andreia, a Liliana, o Marcos, o Miguel, e todos
os outros, participaram no debate da forma como o fizeram.
Há, por isso, muitos outros debates a explicar a ocorrência deste debate. Há,
também, uma relação que se foi construindo entre todos e um entendimento inequívoco
da linguagem como um mediador decisivo ou um obstáculo a ter em conta no âmbito
do conjunto das aprendizagens a realizar pelos alunos. Há, igualmente, um ambiente
de trabalho que demonstra como o pedagógico se constrói, em larga medida, em
função do que alguns, de forma apressada, designam pelo científico e como a
relação que se estabelece entre as crianças e o património decorrente desse
científico permite justificar e legitimar a organização que o pedagógico propõe
para que um tal património faça sentido.
Olha-se, finalmente, para a reflexão que Manuela Castro Neves produziu, na sequência
do debate que parcialmente transcrevemos, a qual permite ilustrar como as práticas
educativas inovadoras só o são, se forem manifestações pedagógicas exigentes
e rigorosas. É uma tal exigência e um tal rigor que permitem à autora do texto
afirmar que "uma coisa é que o professor pensa que foi interiorizado pelos
alunos, outra a que eles realmente interiorizaram ou podem interiorizar num
determinado tempo do seu percurso". É essa mesma exigência e rigor que lhe
permitem avaliar as dificuldades dos alunos mais como um confronto com um obstáculo,
do que uma manifestação de ignorância. Um obstáculo que, afinal, só foi ultrapassado
"quando se criou uma consciência colectiva acerca dele, quando foi verbalizado",
o que permite que se escreva, então, "que a explicitação constitui-se em
si própria como um meio de aprendizagem tão importante talvez como a manipulação
de materiais". É também essa exigência e esse rigor que possibilitaram que
o debate não fosse um arremedo dos diálogos de um Sócrates a conduzir habilmente
o escravo Menón no labirinto cognitivo que o primeiro traçou rumo às respostas
que o segundo, afinal, nunca pôde recusar.
Foi uma conversa séria onde o professor existiu, intervindo de forma decisiva,
mas não manipulando. Foi uma conversa séria onde os alunos tiveram acesso a
um espaço de confronto com o conhecimento matemático, sem que isso os subalternizasse
como pessoas. Foi uma conversa que deverá ser compreendida, também, no conjunto
mais amplo das actividades realizadas para aceder ao domínio da multiplicação
com números decimais, compreendendo-se, então, como não são os exercícios nem
a sua rotina que estão em causa no ensino da Matemática, mas o modo como estes
contribuem para iludir, demasiadas vezes, a falta de sentido das aprendizagens
das crianças nesse âmbito, as suas dificuldade de compreensão ou a desvalorização
de obstáculos que não podem ser identificados como objectos relacionados com
manifestações de incompetência. Neste sentido, ser exigente nada tem a ver com
a saudade do Palma Fernandes e dos fins de semana a realizar equações atrás
de equações sem perceber o que se fazia e porque é que isso tinha que ser feito.
Neste sentido, ser rigoroso nada tem a ver, também, com a exaltação do tempo
das reprovações a granel. Por isso, discutir o rigor e a exigência é uma tarefa
bem mais complicada do que aquilo que na realidade parece, na medida em que
não se compadece nem com frases feitas, nem com preconceitos sociais e académicos,
nem tão pouco com o desinvestimento profissional e pedagógico.
Ariana Cosme e Rui Trindade / Universidade do Porto
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