Modéstia à parte, aqui, neste jornal, que hoje completa dez
anos, temos apostado, constantemente, no valor da dúvida e na urgência da dissidência,
acreditando que, "neste mundo global e totalitário, os jornalistas, e outros
intelectuais, ainda podem jogar o papel do contra-poder, dar voz aos sem voz,
reconfortar os que vivem na aflição e inquietar os que vivem no conforto". Como
decretava o poeta Nanni Balestrini, a poesia faz mal mas por sorte nossa não
haverá nunca ninguém disposto a acreditar nisso.
Embora reconhecendo, como muitos outros jornalistas mobilizados
neste teatro de guerra ideológico, que os meios de comunicação social de massas,
tal como os governos, estão a transformar-se em brigadas de aclamação e apoio
dos mercados financeiros (onde a ortodoxia liberal tende a tornar-se totalitária)
temos resistido na exacta medida em que reconhecemos como válido muito do que
tem sido tido como marginal.
Há dez anos (como sabe bem reler um jornal antigo, reavaliando a importância
do que então foi seleccionado), na hora da apresentação, prometíamos uma arquitectura
gráfica inovadora e uma informação sem muros no trabalho multidisciplinar de
uma equipa de professores, jornalistas, informáticos e profissionais da comunicação
visual. Poucos, além de nós, acreditariam que "a Página" iria afirmar-se como
um jornal de referência na área da Educação e da Cultura.
Nesse primeiro número, Artur Queiroz inaugurava o canto das crónicas de "a Página"
com paixão, zurzindo nos intelectuais de pacotilha que são capazes de dizer,
sem corar, que Catulo é um poeta menor. Como se este nome sagrado da Paixão
Cearense não passasse "de um rapazinho desajeitado, pegando na pena com a mão
esquerda, no primeiro dia em que entrou na escola".
Nós, sim, estavamos a começar e pegavamos na pena com a mão esquerda. Abríamos
páginas com memórias a sério - é comovente reler a conversa com Felisberto Lemos,
um livreiro a quem Manuel Alegre chamou da Esperança - e dávamos páginas inteiras
à poesia. O primeiro poema foi o "Aviso à Navegação" de Joaquim Namorado: "Alto
lá! // Aviso à navegação! // Eu não morri: // Estou aqui // na ilha sem nome,
sem latitude nem longitude, // perdida nos mapas, // perdida no mar Tenebroso
(...) ".
Imoderadamente fomos ensaiando soluções inacabadas de jornalismo, na forma e
no conteúdo, que outros, não raras vezes, aproveitaram e reciclaram. Ao longo
de dez anos - a falar de namoros, de músicas, dos anos 60, de informação alternativa,
da questão do género, de deontologia, de... - fomos erguendo este património
que não é só nosso mas também, e em especial, dos leitores.
Dez anos a entrevistar gente, como Armando Castro, o nosso primeiro entrevistado,
ou Orlando de Carvalho, de quem também publicamos um longo poema, retirado do
livro "Sobre a Noite e a Vida", onde o poeta fala de como a "Grândola Vila Morena"
também foi cantada por patifes.
Dez anos em que andamos, como alguém aqui escreveu, "a tocar e a ser tocados
por qualquer coisa que é, seguramente, feminina e fértil, como se o Mundo todo
coubesse numa praça, como qualquer Praça da República, da coisa nossa e pública,
como o mar nosso".
Dez anos, aprendendo, com Gabriel Garcia Marques, o engano de pensar que deixaremos
de ter paixões com o passar do tempo, quando, na verdade, só envelhece quem
deixa de apaixonar-se, máxima que também se aplica aos jornais.
Cumprindo ciclos, preparamo-nos hoje para um novo salto. Por uma coincidência
que auguramos de feliz, o tema do mês (o dos primeiros ciclos) é, neste número
de aniversário, o mesmo do primeiro jornal, de Dezembro de 1991. Será, acreditamos,
o sinal para uma nova década de homenagem ao valor da dúvida e à necessidade
da dissidência.
Uma década que terá de ser vivida com a cumplicidade dos nossos leitores, os
leitores de "a Página" que merecem o mesmo louvor que Balestrini dedicou ao
público da poesia.
"(...) Cá estamos nós outra vez // sentados em frente do público da poesia //
sentado em frente de nós ameaçador // fitando-nos e esperando a poesia". //
(...) Na verdade o público da poesia não é ameaçador // se calhar nem está todo
sentado // se calhar algum está também de pé // porque acorreu entusiástico
e numeroso// // Ou talvez haja umas tantas cadeiras vazias // mas os que vieram
são os melhores // fizeram este grande esforço só mesmo por nós // porque é
que haviam de ameaçar-nos // // O público da poesia não ameaça rigorosamente
ninguém // pelo contrário é atencioso generoso atento // prudente interessado
devotado // ávido mirífico um pouco inibido//.
(...) O público da poesia é infindo variado não se pode circunscrever // como
as ondas do mar profundo // o público da poesia é bonito altaneiro insaciável
temerário // olha de frente impávido e intransigente // // vê-me aqui a ler-lhe
esta treta // e acha que é poesia // porque este é o nosso pacto secreto //
e a coisa é do agrado de ambos".
Entre nós, o audiovisual explodiu sem que a cultura tradicional do livro estivesse
disseminada e nesta situação seria desejável desenvolver a Imprensa escrita.
Não uma imprensa puramente informativa, temperada com um ou outro comentário
apressado, mas uma outra diferente, mais completa, dissidente mesmo que aparentemente
marginal.
"Incontornável é a luz de New York", disse nestas páginas o Augusto Baptista,
um homem da imagem, a ensinar-nos a viajar pela leitura. "Cavaqueio sobre a
vida com os negros do Harlém, grudados às paredes, em becos sebados de lixo,
bourbon e droga. Ao longe, inquietos, acordes de gaita de beiços a marcar o
ritmo de sussurrantes dolências. Blues arrastados, com letras pretas. Deprimentes.
Levanto voo, parto para outra. E, em plongé, aproveito a luz de fim de tarde
para fotografar a Estátua da Liberdade: Good by, lady!"
Temos tentado e queremos continuar a tentar ser tudo isto e muito mais. Sendo
dissidentes e imoderados.
O colectivo de "a Página"
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