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José Luís Fernandes leva-nos, rio abaixo, ao sítio das drogas

Um olhar sobre outros mundos

É um tema difícil de abordar pelos tabus e pela desinformação que encerra. Mas talvez ninguém melhor do que José Luís Fernandes, professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto (FPCEP), investigador do Centro de Ciências de Comportamento Desviante daquela faculdade e do Observatório Permanente de Segurança do Porto, para nos desvendar mais àcerca das questões ligadas às drogas - duras e leves, lícitas e ilícitas -, do seu papel nas sociedades humanas e das diferentes estratégias mundiais utilizadas para lidar com elas. A sua tese de mestrado - "Sub-culturas juvenis em torno das drogas leves" - realizada a partir de um trabalho de terreno feito na zona histórica do Porto, e a de doutoramento - "Caracterização dos chamados "mundos da droga" em zonas urbanas periferizadas" -, são dois exemplos que ilustram o seu conhecimento prático deste tema e lhe permitem assumir a construção de um discurso argumentativo que se reflecte, nomeadamente, na publicação de trabalhos de investigação em diversas publicações da área da antropologia, sociologia e psicologia. Além destes trabalhos, publicou igualmente os livros "O sítio das drogas", de 1999, e "Pelo rio abaixo - crónica de uma cidade insegura", de 2001, ambos da Editorial Notícias. Actualmente, desenvolve um trabalho de investigação intitulado "Populações ocultas", encomendado pelo Instituto Português da Droga e da Toxicodependência, sobre o uso de drogas em estratos de difícil visibilidade social, seja elas franjas marginais e ou elites profissionais e culturais.


A resolução dos problema associados ao tráfico e consumo de drogas passa por um comprometimento político?

Sim, mas não apenas político. Se também entendermos as relações económicas internacionais como uma forma de política, nomeadamente a relação entre as economias de países produtores de substâncias ditas "estupefacientes", ou psicotrópicas, e as economias ocidentais, então este será também um problema de economia política e até de geo-estratégia. Mas a origem é claramente de ordem política.


De que forma?

Peguemos no caso da folha coca, por exemplo - que deu origem a uma substância extremamente importante no mundo moderno, a cocaína -, consumida ancestralmente nas zonas montanhosas das latitudes do hemisfério sul, naquilo que são hoje países como a Bolívia, o Perú ou a Colômbia.

Na fase pré-incaica, a coca era uma substância de grande utilidade para essas populações locais, pelas funções que cumpria em termos de aumento da resistência física em altitude, de inibição da fome em populações mal alimentadas e de utilização em rituais sagrados. Na fase do império Inca ela continua a ser uma planta com poderes sagrados, mas de algum modo reservada já às elites da hierarquia social.

Quando os colonizadores espanhóis chegam à américa a folha de coca vai estar na origem de diversos conflitos religiosos e comerciais. Religiosos porque se procurava substituir as religiões locais pela religião católica, e na medida em que a folha de coca era um elemento simbólico opositor à introdução de uma nova religiosidade, funciona como um primeiro factor repressivo de origem religiosa. De origem comercial, na medida em que, juntamente com os clérigos, viajavam muitos indivíduos interessados apenas na componente comercial da colonização, que se apercebem rapidamente que a folha de coca pode ser trazida para a europa e, utilizada como tónico e fortificante, resultar num produto de importante valia comercial.


Da mesma forma, o ópio dos países asiáticos funcionou para a Inglaterra como uma importante fonte de rendimentos...

Exactamente. Quando portugueses e ingleses chegam ao oriente o ópio também irá estar na origem de grandes conflitos, que começam, aliás, com os portugueses, quando nas rotas do médio e do extremo oriente os comerciantes nacionais começam a levar ópio, entre outras mercadorias, da Turquia para a China, que tinha um maior poder psicotrópico do que o chinês - talvez por razões climáticas, não sei ao certo - e que começou a oferecer vantagens relativamente ao ópio local. Claro que isto originou importantes movimentações de protecção do ópio chinês relativamente a ópios "estranhos".

Mais tarde, também os ingleses se apercebem de que estão perante uma mercadoria de alto valor comercial, consumida por uma substancial percentagem de pessoas, e apropriam-se deste mercado. Estamos mais uma vez, por isso, em face de uma questão política, que a coroa britânica definiu durante anos como um problema de primeira importância para as finanças da coroa, só mais tarde o considerando como uma praga.


Nos mercados paralelos, a droga já foi considerado o terceiro negócio a nível mundial...

Sim. Calcula-se que cerca de oito por cento da finança mundial seja gerada pela economia das drogas e cerca de 30 por cento esteja relacionada com economias clandestinas. Ou seja, quase um terço da economia mundial é resultante de dinheiros que são gerados fora das economias formais reguladas pelos estados. Isto são dados da Organização das Nações Unidas (ONU), que em Portugal têm sido divulgados com regularidade pela SOMA, a Associação Anti-Proibicionista Portuguesa.


Porque razão o consumo de drogas se generalizou nas sociedades contemporâneas como instrumento recreacional?

Antes de responder à sua pergunta deixe-me fazer um curto percurso histórico da generalização destas substâncias no ocidente moderno - ou seja, da segunda metade do século XIX em diante - que, aliás, não se inicia de uma forma recreacional, mas associada à medicina. Diversos estados aperceberam-se que elas tinham um grande valor mercantil e passaram a taxar as suas importações e exportações. Pode dizer-se, por isso, que a primeira fase de generalização das drogas é uma fase marcada pela fiscalidade.

É nessa altura também que aparece a primeira vaga de morfinomania (adição à morfina), na sequência da guerra franco-prussiana, onde uma série de soldados são tratados com morfina - que foi experimentada terapeuticamente por se revelar um excelente anestésico -, manifestando sintomas daquilo a que hoje se chamaria síndroma de abstinência. É também por volta dessa altura que ficou célebre na europa o chamado xarope Mariani - ao que consta o papa Leão XIII gostava particularmente dele -, uma substância que combinava vinhos de Bordéus com um preparado de coca, e que era considerado como um fortificante. Ou seja, as drogas tinham já então uma componente medicamentosa e, de algum modo, recreacional, e estava na forja o problema da dependência tóxica e desviante que elas geram.

A sua generalização no ocidente, em termos recreacionais, prende-se, na minha opinião, com o excesso de racionalidade que caracteriza a sociedade ocidental, conferindo aos cidadãos dos países ocidentais, e particularmente aos europeus, uma certa rigidez de comportamento. Tudo o que foge à razão é olhado com desconfiança. Acontece, porém, que a própria alma humana foge à razão: se tem uma componente racional, tem muitas outras que não o são. Ainda hoje li uma notícia a propósito de uma cerimónia "umbanda" em plena avenida de copacabana, no Rio de Janeiro, onde um idoso foi alegadamente possuído pelo espírito de um "escravo preto velho", levando as pessoas na rua a fazerem uma fila indiana para que o homem em transe lhes desse uma consulta... em plena copacabana, que é um local altamente sofisticado, com todos os traços de urbanidade que caracterizam qualquer capital ocidental. Isto porque, no Brasil, como na américa latina em geral, a sociedade não chegou a estirpar completamente as componentes não racionais do espírito humano e convive com elas. E esta componente tem um grande poder de escape e de equilíbrio psicológico na sociedade.

No ocidente expulsamos isso como expulsamos as bruxas com a fogueira. O que fazemos a essa componente da nossa alma? A proliferação de seitas tipo Igreja Universal do Reino de Deus é um exemplo dessa fuga. O poderio económico e a racionalidade crescem por um lado, e estas franjas de irracionalidade crescem por outro, simultaneamente. Não tenho dúvidas nenhumas que o consumo de drogas se inscreve algures a meio caminho deste percurso, como um elemento que "despenteia" esta racionalidade excessiva e funciona como um tubo de escape. E que, seguramente, irá continuar a funcionar. E ainda bem.


Li recentemente num artigo de Jorge Quintas, investigador do Observatório Permanente de Segurança do Porto e docente do curso de psicologia clínica do Instituto Superior de Ciências da Saúde, que "assumindo a impossibilidade de se viver numa sociedade sem drogas" será mais importante "aprender a viver numa sociedade com drogas, onde importa fundamentalmente regular os consumos e as suas consequências". Concorda?

Essa é a opinião do Jorge Quintas e de uma série de outros especialistas nesta área. E mais do que uma opinião, assenta num facto verificável empiricamente: o de serem muito raras as sociedades actuais, ou anteriores a nós, que não tivessem produzido e desenvolvido métodos voluntários de alteração da consciência. E é um facto empírico que nem sequer é legítimo contornarmos, porque estaríamos a faltar à verdade antropo-histórica. Donde, que a questão da sociedade sem drogas não se poder colocar. Quanto muito poderá colocar-se a questão de regressar a uma utilização das drogas, que já existiu e se perdeu, menos conotada com a patologia, a criminalidade, a insegurança ou a exclusão social, porque esses são os vectores à qual têm estado associadas.


Será por essa razão que as sociedades ocidentais aceitam a existência de drogas lícitas como o álcool, o tabaco ou os ansiolíticos e censuram outras como a cannabis, mais conhecida como haxixe?

Penso que isso se deve a razões estritamente civilizacionais e, de algum modo, arbitrárias. A cannabis é uma droga extra-ocidental, conotada com outro tipo de povos, como os berberes do norte de áfrica, por exemplo, cuja tradição literal é "bárbaros" (os romanos, aliás, quando chegavam a qualquer lado e não encontravam povos com hábitos semelhantes aos seus classificavam-nos como bárbaros). É nomeadamente por esta razão que as substâncias de utilização tradicional destes povos foram de imediato olhadas com desconfiança, porque eram elementos associados àquilo que era suposto ser o seu atavismo cultural. O álcool, por seu lado, é uma droga do cristianismo, e ao promover-se o cristianismo promoveu-se, por inerência, o álcool.


Há falta de informação - ou mesmo desinformação - àcerca deste tema?

A desinformação é provocada pelo país que lidera mundialmente o combate às droga, que conseguiu que os convénios das Nações Unidas obedeçam à sua estratégia, mas que sempre teve um uma política extraordinariamente ambivalente no que respeita a esta questão: os Estados Unidos.

Exemplo disso são as relações com os países da américa latina, nomeadamente em países produtores onde subsistem guerrilhas revolucionárias, onde a questão da droga foi e é utilizada como uma justificação para o combate a esses movimentos. Os países ocidentais, à excepção da Holanda e da Grã-Bretanha, e até certo ponto da Espanha, sempre compraram tranquilamente o discurso americano, exportado para todo o mundo juntamente com outras mercadorias como a coca-cola e o armamento. Nomeadamente a Alemanha e a França, países com grande influência, mas que demonstram ter incapacidade crítica. Por consequência, nas regiões onde anteriormente se consumia ópio, nomeadamente na Ásia, ou cannabis, como no norte de África, a juventude, pelo menos a oriunda da classe média, vive segundo os padrões de consumo ocidentais. Tem algum nexo, por exemplo, que a cannabis seja hoje perseguida nas grandes cidades marroquinas?


Nos últimos quinze anos o número de consumidores multiplicou-se, os problemas de saúde públicos aumentaram e o número de detidos nas cadeias cresceu para o dobro. A via repressiva de combate ao consumo de drogas parece não ter funcionado...

É uma via que está esgotada, mas temo bem que seja capaz de continuar a ser aplicada. Não em todos os lados nem com a mesma força, não se anula assim com essa rapidez, porque, apesar de tudo, se ela não logrou diminuir essas estatísticas tem a sua funcionalidade: as forças policiais prosperaram, têm mais efectivos, mais meios, as prisões têm mais funcionários... antigamente tínhamos sete mil reclusos, hoje temos 14 mil.


Cerca de 70% ligados ao pequeno crime de estupefacientes, segundo números divulgados pela justiça...

Sim.


Ou seja, o sobrelotamento das cadeias poderia ser resolvido e, dessa forma, criar condições mais propícias à reinserção dos restantes detidos?

Evidente. Reduziríamos a taxa de encarceramento a menos de metade, criando, desde logo, uma situação mais favorável em termos de erário público. Há um desbaratar de recursos penitenciários para algo que não traz resultados. Para que serve prender essas pessoas?


Concorda com a distribuição de seringas nos estabelecimentos prisionais?

A questão não é distribuir seringas, é passar a distribuir seringas limpas. Se não queremos ser hipócritas, mais vale reconhecer o problema e enfrentá-lo. Os próprios serviços prisionais reconhecem-no, porque ele é de tal modo visível que não o podem negar.


A opinião sobre as chamadas "salas de chuto" não é tão consensual...

Pela minha parte concordo, em geral, com todas as medidas que têm sido inventariadas no que respeita à diminuição de riscos. São medidas que estão a tentar minorar os efeitos daquilo que uma política criminal de origem repressiva não soube acautelar.


Os meios de apoio à recuperação dos toxicodependentes estão a funcionar? Muitos queixam-se de não ter lugar nos centros de atendimento...

É inegável que o estado tem feito um esforço assinalável de cobertura nacional de centros de recuperação. Mas isso não deve esgotar as respostas da sociedade civil, que na nova lei de despenalização do consumo tem um papel importante. As casas de chuto e outras medidas de redução de risco, por exemplo, podem ser levadas à prática por autarquias, associações locais, privados, etc. Quanto às listas de espera, elas podem ser maiores em alguns locais relativamente a outros, mas onde é que não existem listas de espera no serviço nacional de saúde? As únicas urgências em toxicodependência parecem ser as "overdoses"...


Pensa que a última legislação sobre a discriminalização do consumo de drogas (Dec.lei 183-2001, de 21 de Junho) é uma medida positiva?

Nesse aspecto, penso que Portugal pode reclamar-se de alguma coragem no contexto europeu. Embora não seja pioneiro, assumiu uma medida corajosa, porque ao reconhecer-se que o consumidor não deve ser entendido como um criminoso tal figura deve ser retirada do código penal.

O facto de haver delitos associados ao consumo de droga não deriva da droga em si mesma, mas do preço que ela atinge. É preciso, portanto, regular os mercados. Até porque se os mercados mundiais não estivessem a render o actual montante com o negócio da droga, talvez hoje não assistissemos aos tais "off-shores" de que tanto se fala, que são autênticos poderes paralelos relativamente aos poderes legítimos dos estados.

Esta situação não é defensável, e a lei portuguesa, ao consagrar a despenalização do consumo, está a fazê-lo de um modo justo. A única questão que me parece descabida é a instituição das chamadas "comissões de dissuasão" - constituídas por equipas multidisciplinares que aconselham ao abandono do consumo através de uma espécie de "sermão" - mas foi uma das formas de o estado conseguir retirar alguns argumentos à oposição.


Pode realmente falar-se da existência de drogas duras e leves?

Sim, desde que esse critério seja complementado com um outro critério, que é o de distinguir entre consumos duros e leves. O regime de uso é fundamental para analisar esta questão, e pode ter muitas variáveis: pessoas que consumem drogas leves com consumos duros, pessoas que consomem drogas duras com consumos leves... mas é inequívoco que existem substâncias que, do ponto de vista da sua toxicidade e da sua margem de segurança - a distância entre uma utilização não prejudicial e uma utilização letal -, são mais perigosas do que outras. A cannabis, por exemplo, apresenta um risco mínimo, o que não quer dizer que não tenha o seu grau de perigosidade, até porque ela é fumada enrolada com tabaco, que é uma substância mais problemática do que a cannabis já que tem mais capacidade de produzir adição.


Como pode a Holanda ser uma "ilha" na europa no que respeita ao consumo de drogas leves, quando a orientação da maioria dos parceiros comunitários vai exactamente no sentido contrário?

Porque a Holanda aproveitou uma brecha na lei internacional, onde se refere que as substâncias "x", "y" e "z" são consideradas ilegais, e portanto completamente proibidas, excepto para fins medicamentosos e de experimentação. Ora, quando se pensa em experimentação associa-se aos ratinhos de laboratório. Os holandeses viram a possibilidade de essa experimentação ser de ordem social, e para isso implementaram uma rede de venda de drogas leves - as "coffee-shops" nascem na Holanda em finais dos anos setenta - no sentido de as separar das drogas duras - a famosa lei de separação de mercados -, porque a pior coisa que pode acontecer a um consumidor de cannabis, por exemplo, é ter de comprá-la no mesmo local onde se vende heroína.


Mas essa disposição legal não entra em conflito com os convénios internacionais e com a progressiva harmonização legislativa da União Europeia?

Sim, tal como entra em conflito a despenalização do consumo em Portugal, porque a resolução de 1998 da ONU continua a criminalizar o consumo de todas as drogas ilegais, e Portugal fugiu a isso. Se quiser, essa é uma espécie de margem de liberdade que ainda sobra a cada estado.


De que forma séria e pedagógica se poderá abordar este tema nas escolas?

Pessoalmente, sou um desintervencionista. Considero que, em assuntos como este, deverá ser o próprio sistema sócio-cultural, através da integração expontânea de condutas, a incorporar esse conhecimento. Temos de aprender a conviver com as drogas, porque elas não vão deixar de fazer parte do nosso panorama sócio-cultural. É um aspecto que não deve ser diabolizado, como tem sido até agora, nem entusiaticamente erigido em bandeira, como seria numa sociedade às avessas desta. Qualquer coisa no meio termo, através de uma educação responsável. E isso não se faz apenas na escola, mas também em casa e na comunicação social, com uma atitude de cidadania responsável.

É uma questão que, a ser abordada na escola, não precisa de um curriculo próprio, mas sempre que os adolescentes a despoletarem por curiosidade própria ser objecto de discussões lúcidas, serenas; não porque queremos vender-lhes um pacote de prevenção que importamos do Reino Unido. É preciso que os professores façam um esforço de auto-formação para estarem à altura dos adolescentes e não sirvam meramente para lhes inculcar uma mensagem negativa, de veiculação de medo, porque isso já se percebeu que não resulta.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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