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Globalização: léxico reduzido
  1. Acerca do que se passou em Génova aquando da última reunião do G7 e G8, já se disse quase tudo, invocando para tanto, vezes sem conta, a palavra "globalização", Mas é aqui que bate o ponto. A maioria das vezes, esta palavra é utilizada para levantar espessas nuvens de poeira ou para lançar nuvens igualmente espessas de gás lacrimogénio. O resultado é semelhante nos dois casos: falta-nos o ar, ficamos com a vista turva, choramos sem querer, e se queremos falar só conseguimos tossir, pigarrear ou, quando muito, gritar alguns chavões. Mesmo assim vale a pena tentar ver, pensar e falar claro. Um pequeno léxico talvez ajude.
  2. Anti-globalização (ou anti-mundialização). Confusa bandeira de luta empunhada por uma vasta e heterogénea coligação de forças presentes em Génova que vêem na "globalização" a causa principal ou única da miséria, da injusta repartição da riqueza e dos desequilíbrios ambientais à escala do planeta.
  3. Globalização (arqueologia de um conceito). Imediatamente após a 2ª guerra mundial, Claude Shannon formulou (1948) a "teoria matemática da comunicação", mais conhecida por teoria da informação. São da mesma época duas invenções feitas quase em simultâneo: as do transistor e do computador digital. O potencial revolucionário destas inovações aparentemente desgarradas, revelar-se-ia bem mais tarde, quando começaram a fazer-se sentir os efeitos sociais da sua aplicação na produção de novos bens e serviços, em particular na produção e distribuição de um novo novo tipo de bem-serviço imaterial: a "informação". A informação, ao contrário dos bens "materiais", é inexaurível, infinitamente expansível e, uma vez criada, práticamente imperecível (embora sujeita a rápida depreciação mercantil). É também fácil de transportar e distribuir e os seus custos de armazenamento tendem a decrescer, segundo um factor ponderável (2 ou mais), cada dois ou três anos. O próprio perfil tecnológico da maquinaria começou a mudar. As máquinas da era industrial eram grandes consumidoras de energia. As máquinas da era informacional são grandes consumidoras de informação. Aquelas aumentavam sobretudo os poderes corporais do homem, estas sobretudo os seus poderes intelectuais. Em suma - simplifico muito, por mor da brevidade - a facilidade e velocidade alcançadas no processamento e teleportação electrónicas da informação, a sua quase-instantânea capacidade de retro-alimentação, começaram paulatinamente a subverter as formas de divisão, fragmentação, especialização e centralização da experiência humana próprias das sociedades configuradas (com mais ou menos Estado, com mais ou menos mercado, com mais ou menos nacionalismo, com um mínimo de liberdade e de democracia ou sem elas) pela "revolução industrial".
  4. Globalização (etimologia). Nos idos de 1960, este processo de globalização da informação estava já suficientemente avançado nos países tecnológicamente mais desenvolvidos para permitir aos mais sagazes discernir um novo padrão emergente. H. M. McLuhan, professor na Escola de Comunicações da Universidade de Toronto, observou que as capacidades de transmissão electrónica dos fluxos de informação tinham impactos não apenas técnicos e confinados aos meios de comunicação, mas consequências culturais profundas, extensíveis a todas as esferas de organização social. A informação electrónicamente transmitida a velocidades próximas das da luz abolia virtualmente as separações geográficas entre os centros de decisão, produção e distribuição à escala mundial. Os meios electrónicos de comunicação à distância não permitiam apenas ampliar os poderes de organização social da população, mas abolir, em grande medida, a sua fragmentação espacial. Para designar o termo lógico deste processo de mudança civilizacional, McLuhan forjou a expressão "aldeia global", maneira sugestiva de dizer que começara já a contagem decrescente para o momento em que o planeta encolheria a ponto de se transformar num lugar onde seria possivel, em princípio, que todos pudéssemos comunicar uns com os outros numa base tu-cá, tu-lá. Tudo isso se tornou hoje bastante óbvio, sobretudo desde que a Internet extravazou do domínio restrito das universidades para se alargar a outros domínios mais mundanos. Na altura em que McLuhan escreveu Understanding Media (1964) era, porém, ver longe e claro.
  5. Globalização (apoplexiosemia do conceito). Volvidos mais de trinta anos, o conceito de "aldeia global" de McLuhan foi retirado da prateleira e submetido a tratos de polé para entrar no pronto-a-vestir das ideologias políticas. Para uma certa esquerda, "globalização" (ou "mundialização") é um termo de substituição do que outrora designava por "imperialismo: estádio supremo do capitalismo". Para uma certa direita, é um designador de "capitalismo neoliberal, filo-judaico e cosmopolita, inimigo jurado da soberania nacional e das tradições ancestrais dos povos". Para outros sectores, de esquerda e de direita, "globalização" é a abreviatura de um extenso rol de malfeitorias de múltipla paternidade: da destruição da floresta Amazónica à lavagem de dinheiro do crime organizado, do buraco na camada de ozono à dívida do "3º Mundo", da pandemia do S.I.D.A à ofensiva contra as conquistas sociais dos trabalhadores, do tráfico de escravos às chuvas àcidas.
  6. Apoplexiosemia. Neologismo aqui proposto para designar o colapso cognitivo de uma palavra submetida repetidamente a trações semânticas excessivas e de sinal contrário. Exemplo: se a palavra "globalização" pode significar, ao gosto do freguês, a "aldeia global" em que o nosso mundo se tornou (ou se vai tornando), ou qualquer dos flagelos que ameaçam destruí-la, dir-se-á que foi vítima de "apoplexiosemia". Que o mesmo é dizer: já não serve para entender o mundo, muito menos para o melhorar.
  7. G7. Directório auto-nomeado dos chefes de Estado e/ou de governo dos países mais ricos em capital - EUA, Canadá, Alemanha, Japão, Reino Unido, França, Itália. Designado por G8 quando a Rússia é autorizada a entrar, já no fim das suas reuniões, com estatuto subalterno. É óbvio que o G7 não tem qualquer legitimidade democrática. Existe, pura e simplesmente, para marginalizar e exercer pressão sobre a ONU e para impedir que os benefícios (reais e potenciais) da globalização se mundializem. Exactamente o contrário das funções que os manifestantes anti-"globalização" nos dizem que ele desempenha: as de eminência parda da mundialização.
  8. ONU. Organização muito imperfeita, mas onde têm assento quase todos os países do planeta (ricos e pobres) e que baseia a sua legitimidade num documento-fundador, a Carta das Nações Unidas, e numa Declaração Universal dos Direitos Humanos votada em 1948; textos subscritos e formalmente acatados por todos os países membros, mesmo por aqueles que os infringem à socapa ou às escâncaras.
  9. Terceiro Mundo. Nome colectivo daqueles países da Àfrica, Àsia, América e Europa - muitos de recursos fabulosos e vellha civilização - que vivem sob o domínio de oligarquias corruptas e incontroláveis que se apropriam da parte do leão dos financiamentos externos e saqueiam a riqueza produzida localmente, que espezinham os direitos humanos e liberdades dos seus povos e que os utilizam amiúde como carne para canhão em guerras civis intermináveis.
  10. Drop the debt (anulem a dívida do 3º mundo). Uma das poucas reivindicações em que os manifestantes anti-"globalização" se puseram de acordo em Génova. O que equivale, na prática, a exigir o perdão das dívidas contraídas pelos oligarcas que governam esses países. Porque não, então, "convertam a dívida do 3º Mundo numa conta-a-fundo-perdido destinada a financiar projectos de desenvolvimento a que só possam concorrer os pobres desses países"?
  11. Abascanto (= o que preserva de malefícios). Para garantir a isenção na apreciação dos projectos e a boa gestão dos dinheiros, porque não reivindicar que a gestão dessa conta seja entregue a um organismo independente presidido rotativamente (e gratuitamente) pelos laureados com o Nobel da Paz, assessorado (gratuitamente) pelas organizações especializadas da ONU (OMS, UNESCO, FAO, UNICEF, OIT, etc) e fiscalizado (gratuitamente) pelas organizações de defesa dos direitos humanos (Amnistia Internacional,Human Rights Watch, etc), de ajuda humanitária (Cruz Vermelha, AMI, etc), e de defesa do ambiente (Green Peace, etc). ?
José Manuel Catarino Soares.
Instituto Politécnico de Setúbal

  
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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