Finalmente cheguei a Maputo. O desencontro com um amigo moçambicano
levou-me a um alojamento no centro da cidade, numa casa transformada em 'turismo
de habitação' para viajantes (e não só) quase sempre ocidentais. Com apenas
três meses de actividade, eu fui o primeiro hóspede português. É uma casa dos
tempos coloniais, gerida por um jovem branco, luso-moçambicano de pertença identitária
ainda não totalmente resolvida, filho de uma família da burguesia colonial portuguesa,
e por uma swazi, filha de pai europeu e mãe africana. Vivem na parte inferior
da casa, enquanto que os clientes ocupam o piso térreo.
Espaço cosmopolita, cruzamento de pessoas, projectos e destinos, nele encontrei
um acolhimento que superou, largamente, as minhas melhores expectativas. Sugestivamente
chamado "The Base", ajudou-me a começar aquilo que nós, antropólogos, chamamos
de imersão na sociedade que nos acolhe. Não no sentido apenas da simpatia, mas
algo mais profundo, o da empatia com os outros, com aqueles que nos são estranhos,
de quem nada sabemos mas queremos saber. Este desejo, profundamente humano,
parece-me sempre avivado pela deformação provocada pela natureza do meu trabalho,
tornando ténue, quando nos encontramos no 'terreno', a diferença entre a observação
dita científica e os sentimentos pessoais. O meu caderno de campo, cúmplice
inseparável das minhas observações e emoções, surgia aos olhos dos outros como
a expressão mais visível desta deformação profissional que atinge o antropólogo,
franqueador, como justamente lembra Christian Bromberger, de espaços e vidas
privados sem que para tal tenha sido convidado.
Marcado pelos primeiros dois dias de viagem, ao longo dos quais encontrei pouco
da áfrica romântica - esse estereótipo muito presente em nós, europeus, que
pouco sabemos deste grande continente a que chamamos negro -, as duas semanas
na 'base' foram vividas com enorme intensidade. A preparação da minha deslocação
para o local principal da investigação decorreu em simultâneo com a descoberta
da cidade e das suas gentes.
A pé ou de 'chapa' - carrinhas de nove lugares que servem para transportar 15
e até 20 passageiros, paradigma da desregulação selvagem imposta a Moçambique
pelas instituições do 'consenso de Washington' -, meti-me, pouco a pouco, na
cidade. Sempre, sempre o contraste, como se, a nós, ele se colasse com uma qualquer
cola invisível produzida por um génio louco. Partindo do centro, qualquer itinerário
conduzia-me, irremediavelmente, às zonas perigosas da cidade, onde a pobreza
faz par com a violência. Mesmo nas zonas civilizadas, mormente nas imediações
dos óptimos restaurantes onde se pode fruir algo dessa áfrica que aprendemos,
em boa medida, a fixar nas salas escuras do cinema, e dos animados bares, prenhes
de mestiçagem étnica e cultural, esbarramos com crianças e jovens, não raro
famintos e consumidos pela doença, uns tentando vender qualquer coisa, outros
pedindo somente alguns meticais.
Encurralado em emoções contraditórias, fui-me afeiçoando à cidade. Apesar dos
passeios esventrados, do lixo acumulado nas ruas, da privação extrema e do sofrimento
ao virar de cada esquina - provas para a condenação, sem perdão, do conluio
entre os senhores do mundo e as elites africanas, desinteressadas da sorte dos
seus povos, porque estão, como aqui se diz, somente preocupadas com a acumulação
-, empreendi a árdua aprendizagem de viver uma nova vida num lugar que, ao contrário
do turista, queremos senti-lo como nosso, mas que sabemos que a ele pertenceremos
apenas transitoriamente e, fatalmente, de uma forma sempre incompleta e imperfeita.
Fernando Bessa Ribeiro
UTAD-Chaves,
fbessa@utad.pt
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