Página  >  Edições  >  N.º 105  >  Cristóvão de Aguiar tinha medo da escola

Cristóvão de Aguiar tinha medo da escola

Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, concelho de Ribeira Grande , ilha de S. Miguel, Açores, em 1940. Frequentou a Escola Primária no Pico da Pedra, tirou o curso complementar de Letras no Liceu Nacional de Ponta Delgada (1960) e licenciou-se em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (1968).
Fez a Guerra Colonial na Guiné entre 1965 e 1967.
Foi professor na Escola Industrial e Comercial de Leiria (1969-72), tradutor na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (1972) e redactor da revista Vértice (1967-82). É, desde 1972, leitor de Língua Inglesa na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, cidade onde reside.
Como escritor recebeu o prémio Ricardo Malheiros (A Semente e a Seiva, 1978) e o Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP (Relação de Bordo, 1999). É ele quem se senta hoje no divã deste espaço.


Luís Souta: Os seus textos mostram muito bem o que era a Escola Primária e o Liceu nos Açores, mas nunca fala da Universidade, apesar de ser professor universitário.

Cristóvão de Aguiar: O que me marcou muito na vida foi a Escola Primária e o Liceu. Além de que uma pessoa quando sai da sua ilha (eu saí em 1960) fica com uma perspectiva mais geral da ilha do que se tivesse ficado lá. Se tivesse ficado na ilha era incapaz de escrever os textos que escrevi. Nós não vemos o que está perto dos nossos olhos. Porque é que não escrevo sobre a Universidade, na sua globalidade. Eu tenho um texto (a publicar num dos próximos diários) que foi a apresentação do meu livro "Relação de Bordo I", em que eu falo mal da Universidade, mas é esporádico. Talvez tenha necessidade de regressar os Açores para escrever sobre Coimbra.

Ainda em relação à ilha, nota-se que tem uma geografia muito bem marcada. Refere, por exemplo, diversos locais de toda a costa norte de S. Miguel.

Sim, só ficciono o Pico da Pedra que aparece como Tronqueira. Nos meus livros a realidade e a ficção interpenetram-se. A diferença relativa à minha ficção é que os nomes são reais. Nos meus livros, há professores que são recriados com o próprio nome e outros que apresentam nomes fictícios. O professor de Francês existiu e era, como eu digo num dos livros, tão mau professor como bom poeta. Miss Pamplinas não se chamava miss Pamplinas e havia, realmente, um professor que nos punha a fazer meditação transcendental no fim das aulas. Houve um ano em que um professor de Matemática deu Português. A minha avó não se chamava Luzia, chamava-se Luz. De facto, na minha obra, a realidade e a ficção interpenetram-se. A maneira de escrever é igual na "Raiz Comovida" e na "Relação de Bordo". A ficção é realidade e o diário (realidade) pode ser ficção. Já quiseram saber a razão que me levou a escrever diários. Eu passei a escrever diários não por que tivesse mudado de género. Há quem tenha lido a "Relação de Bordo I", o meu primeiro diário, como um romance. Na verdade, apenas mudei de forma... Não gosto de me repetir...

Um aspecto fascinante da sua escrita é a reconstrução da etnografia escolar. Você fala, por exemplo, em três toques e no toque do sumário. Nunca tinha lido nada sobre isso.

No Liceu de Ponta Delgada era assim. O primeiro toque era para os alunos, o segundo para as meninas e o terceiro para o sumário. No final da aula, o primeiro toque era para o sumário e o segundo para sair. Não sei se isso era comum a todos liceus mas no Liceu de Ponta Delgada era assim.

Outro dado curioso é o referente ao calendário escolar. Na "Vindima de Fogo" diz que às quintas feiras não havia escola.

Isso era assim no tempo da República. Refiro isso como a memória de uma tradição da Primeira República segundo a qual não havia aulas à quinta-feira, julgo que em todos os graus de ensino... Faziam uma pausa, a meio da semana, talvez para dar mais energia aos alunos... Isto acontecia no tempo da minha mãe, na primeira República.

Assinala também a heterogeneidade populacional na escola do seu tempo.

O Liceu de Ponta Delgada era misto, embora no meu 5º ano tivesse sido criado uma secção feminina. No 6º e 7º ano (actual décimo e décimo primeiro) era misto. Mas nós não estávamos habituados a ligar com as miúdas. Viamo-las à distância... Havia uma separação rígida.

Referia-me, especialmente, à heterogeneidade social. Os meninos da cidade, «aristocratas de meia-tijela», como os designa, e os de fora de cidade (cinco: quatro do concelho da Ribeira Grande e um do Nordeste).

Havia uma percentagem muito pequena de gente de fora da cidade a estudar. Estes, ou ficavam alojados na cidade ou iam na camioneta todos os dias. Eu fazia parte do grupo, desse pequeno número de alunos, fora da burguesia e da aristocracia de meia-tijela, que conseguiu ir para o Liceu. Éramos olhados com outros olhos. Tínhamos menos benesses, os professores tratavam-nos de outra maneira.

E o "regrão" que o seu avô lhe fez, o que era?

O regrão era uma régua grossa que também servia para dar palmatoadas. Como o meu avô era carpinteiro, fez-me uma régua. Mas como era grossa e boa para bater, o professor, quando precisava dela para as palmatoadas, vinha buscá-la.

A ligação dos pais à escola, mostra como era distante nos saberes mas próxima nas relações humanas. Havia uma influência indirecta sobre os professores que se «guiavam mais pelos parâmetros das árvores genealógicas».

Na escola da palmatoada, os pais influenciavam mesmo sem lá estarem. Na Primária e mesmo no Liceu.. Os professores sabiam com quem estavam a falar. Até pelos nomes. Numa ilha é fácil saber quem pertence a uma família ilustre. A influência que os pais tinham na sociedade chegava à escola.

E a intolerância, como a da professora que dizia não consentir canhotices.

A canhotice, escrever com a esquerda, era considerada, há muitos anos, como sendo uma coisa do Diabo, um aleijão provocado pelo Diabo. E as pessoas que nasciam esquerdinas eram, muitas vezes, torturadas. Essa história da "Vindima de Fogo" não é totalmente verdadeira mas é da realidade.

Acha que o olhar do escritor sobre a escola constitui uma boa fonte de análise para a compreensão da própria instituição escola.

No meu caso particular, escrevo muito sobre a escola e sobre o Liceu porque foram duas instituições que me marcaram muito. Eu tinha medo. A escola não era a alegria que é hoje. No meu tempo ia-se para a escola com medo. Esse medo marcou-me muito. Talvez por isso escreva tanto sobre a escola. A minha memória acompanha-me sempre. Quando falo, de memória, do meu Liceu, chego a pensar que não falo do passado. Há certas coisas que me aconteceram na escola que me acompanham pela vida fora, que são aguilhões. Ter memória é muito bom mas também pode ser muito mau.

Não deixa de ser interessante que só transponha para a literatura a sua experiência como aluno, nunca a de professor.

Eu sempre quis ser escritor. E a profissão de professor, embora goste muito de ser professor, sempre foi um ganha pão. Sempre quis arranjar uma profissão que me desse tempo para escrever... Dou as minhas aulas com gosto, os alunos gostam das minhas aulas, mas eu não considero isto a minha profissão. É apenas uma maneira de sobreviver. A minha devoção é à profissão de sempre, a de escritor. Embora não escreva todos os dias e passe muitos períodos sem escrever.

Voltando à especificidade do olhar do escritor sobre a escola. Normalmente a escola é analisada como instituição social por aqueles que são especialistas na matéria, os pedagogos.

Há vantagens no olhar do escritor. Talvez toque em pontos mais sensíveis. Eu não acredito que um bom professor seja, obrigatoriamente, aquele que estudou muita pedagogia. Ser professor é um dom, como ser actor. Não se aprende, nasce connosco, pode-se aperfeiçoar. A pedagogia não forma nenhum professor. Pode aperfeiçoar o talento que uma pessoa tenha para dar aulas. A aula é qualquer coisa como um "happpening", se o professor é bom. Isto de uma pessoa ir para uma aula rigorosamente planeada, cinco minutos para motivação, mais dez não sei para quê, isto assumido como uma técnica é uma sensaboria muito grande. A pessoa que sabe dar aulas, que tem o dom para dar aulas, integra tudo isso naturalmente.

Passemos para os géneros literários. Você consegue contornar a categorização em géneros, através da ironia (novela em espiral, narrativa militar aplicada, polifonia romanesca, romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto, diário ou nem tanto ou talvez muito mais, são algumas das catalogações que utiliza).

Quando publiquei o primeiro volume de "Raiz Comovida" chamei-lhe romance. Foi uma estreia na literatura com sorte. Entrei com o pé direito, ganhei o prémio Ricardo Malheiros e recebi centenas de críticas. Acontecia que muitos dos críticos que se debruçavam sobre a minha obra dedicavam grande parte da crítica a interrogar-se sobre se a obra era ou não um romance... Desde então passei a catalogar os meus textos, para os fintar. O "Ciclone de Setembro" passou a ser «romance ou o que lhe queiram chamar». Os géneros literários, como fronteiras, estão cada vez mais esbatidos.

Acha que esse esbatimento tem tendência a acentuar-se.

Acho que sim A narrativa pode ser crónica, pode ser romance, pode ser poesia. Por que devemos meter-nos em varais tão rígidos. A novela! O que é a novela e o romance? Qual a diferença? Uns dizem que é pelo número de páginas¦

Essa será uma das suas idiossincrasias. Não há texto que saia sem a sua caracterização.

Talvez sim. Veja o "Relação de Bordo". Se eu dissesse que aquilo era um diário estava a mentir. Um diário é aquilo que se escreve todos os dias. Aquilo não é um diário, aquilo tem tudo, tem crónica, tem conto, tem acontecimento histórico... E eu assumo que aquilo é uma diário literário. Que eu escrevo e reescrevo tal qual um romance. Não há nada de expontâneo. Há muito trabalho para parecer expontâneo.

Já que defende essa interpenetração de géneros, não seria o diário um espaço adequado para recuperar a poesia.

Têm dito que sim. Que eu tenho muita poesia na prosa.

Eu iria mais longe. Eu estava a pensar em termos formais, incluir poesia, na sua forma mais clássica... O Miguel Torga tentou, nos diários, casar poesia e prosa.

Talvez por ter começado no caminho neo-realista, e não tivesse saído nisso, não me sinto bem com a forma poética... O que não quer dizer que não tenha textos que outros consideram verdadeiros poemas. Por exemplo na "Relação de Bordo".

O neo-realismo parece ser de facto a sua génese. Há um jornal (citado na própria badana do livro) que considera a "Vindima de Fogo" um romance neo-realista.

Acho que esse romance não é neo-realista no verdadeiro sentido da palavra. Se lermos os primeiros livros do Redol reconhecemos que é literatura que cumpre um determinado ideário. Mas se formos ler o Torga, que não é neo-realista nem presencista, encontramos contos e livros onde ele pode ser considerado um neo-realista, entre aspas, no sentido social. Onde ele aponta o dedo às chagas sociais sem ser panfletário. Sem ser panfletário.

Mudando de direcção, como vê, actualmente, o lugar que a literatura tem no nosso sistema escolar?

Eu sou muito crítico do nosso sistema escolar. Penso que não se pode aprender literatura sem se saber primeiro a língua. O que faltará no nosso ensino é o ensino profundo do Português. Não sei como. O que sei é que os jovens estão cada vez a escrever pior. E não se pode amar a literatura, amar um texto, sem se saber a língua. Neste aspecto temos que modificar o nosso ensino. Não digo para voltar aos métodos antigos ­ que não prestavam para nada ­ mas é preciso voltar ao ensino do Português.

O paradoxo é que, antigamente, o Português terminava, para a grande maioria, no 5º ano (actual 9º ano) e era ministrado em menos aulas semanais do que agora.

O que acontece é que nós desprezamos a nossa capacidade de memorizar. Uma criança tem de armazenar conhecimentos. Isso não é nenhum traumatismo. Se nós não aprendermos a tabuada ou a andar de bicicleta aos 5 ou 6 anos. Se não aprendermos a nadar aos 5 ou 6 anos, a gente nunca mais aprende a nadar com a mesma destreza de quem começou em miúdo.

Já agora, gostaria que comentasse o facto da literatura estar a ser remetida para os anos terminais e dos textos literários dos autores portugueses estarem ausentes nos primeiros anos. Vê inconveniente em que esta abordagem se faça mais cedo?

Logo que uma pessoa tenha um conhecimento profundo da sua língua. O vício da leitura adquire-se aos 14, 15 anos. E é curioso verificar, no nosso panorama editorial, que os livros infanto-juvenis têm tiragens elevadas mas os demais livros não. Qual a razão da perda destes leitores?

Vê com preocupação essa situação?

Claro, o panorama é muito negro. Só 45% da população portuguesa tem hábitos de leitura, mas apesar disto publicam-se cerca de 9000 títulos por ano. Em nome da sobrevivência das editoras. Hoje, com a procura desenfreada da novidade, o tempo útil de vida de um livro, comercialmente falando, é de mês e meio. As editoras para sobreviverem têm de editar muitos títulos. Encontrar um clássico numa livraria é difícil. Não estão vocacionadas para tal. Eu tenho esperança que tudo isso se modifique um dia e que a leitura volte a ter a importância que já teve.

Entrevista conduzida por Luís Souta

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Cristóvão de Aguiar
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Cristóvão de Aguiar
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo