Pedagogo Doutorado
dá Volta ao Mundo e Fica Atarantado ?
Pedagogo Atarantado
dá Volta ao Mundo e Fica Doutorado ?
Doutorado Atarantado
dá Volta ao Mundo e Fica Pedagogo ?
Como se diz nalgumas regiões do Brasil, morre-se de morte matada e de
morte morrida. Nestes casos morre-se fisicamente. Ou seja, quem parte é
o morto. Mas pode morrer-se sem partir. Ou talvez seja mais correcto dizer-se
que muitas vezes são as paixões, os amores, os conhecimentos,
as relações, os prazeres e as angústias que morrem para
nós. Ou nós morremos para elas. Ou nós e elas passamos
a viver em mundos paralelos. Vamos até ao infinito sem nunca mais nos
encontrar-mos.
A paixão é um estado de exaltação que resulta do
desejo de conhecer. O desejo de conhecimento completo e a dificuldade de materializar
tal desejo gera o sentimento de exaltação ou de paixão.
Apaixonamo-nos por pessoas, por coisas e conhecimentos. A história de
Romeu e Julieta é o exemplo acabado da paixão. Os jovens querem
desesperadamente conhecer-se ? incorporar-se um no outro ? mas toda a conjuntura
é adversa a esse desejo, daí a exaltação, a angústia,
o desespero, o acto heróico, o suicídio. Podemos apaixonar-nos
pela História, a Filosofia ? quando sentimos um desejo profundo de as
conhecer e elas se revelam fugidias, difíceis e cada vez se nos apresentam
mais misteriosas, desconhecidas.
O amor é um sentimento mais calmo do que a paixão e sucede a
esta na ordem natural dos sentimentos. O amor supõe já a posse
de algum conhecimento do outro. No amor uma parte do outro já faz parte
de nós mas ainda há muito para conhecer. É pois o amor
mais estável do que a paixão porque entre os que se amam se estabelece
uma ponte que permite o vai vem do conhecimento e do reconhecimento. Uma ponte
de estabilidade. Neste sentido podemos amar a História e a Filosofia
quando delas já temos algum conhecimento seguro, o suficiente para despertar
e manter o interesse por alargar e aprofundar tal conhecimento. O amor termina
quando se assume o desinteresse (desilusão) do conhecimento do outro,
das coisas ou dos conhecimentos.
A amizade é um sentimento superior aos anteriores. É um estado
calmo e difícil de atingir. Pressupõe uma larguíssima partilha
de conhecimento mútuo. A amizade está relacionada com o saber.
A sabedoria ? forma superior de conhecimento ? é um bem acessível
aqueles que têm o privilégio de manter uma profunda relação
com campos do conhecimento. Neste sentido somos amigos de uma ou mais áreas
do conhecimento quando temos o privilégio de as conhecer em profundidade.
Noutro plano das relações podemos afirmar a nossa amizade pela
Teresa, A Sofia, a Catarina, o João ? escolham outro nome.
Se estes pressupostos tivessem alguma validade, poderiam levar-nos a dizer
que a educação e o ensino são actos capazes de despertar
paixões que conduzam ao amor e desagúem numa calma e profunda
amizade. Educar e ensinar é criar condições que despertem
interesses, desejos de conhecer, estados exaltados de paixão pelo conhecimento.
É ajudar a encontrar o caminho que permita a cada um ser um amigo do
saber. Mas a educação e o ensino raramente são assim.
Recordo um episódio ocorrido em 1968. Nesse ano participei numa tentativa,
semi-clandestina, de "estudo sociológico" da população
da zona da Lapa, na cidade do Porto. O estudo iniciou-se com um inquérito
à população residente. Numa das casas em que entrei para
fazer o inquérito, notei que corriam por ali muitas crianças com
idade em escada. Ao chegar à pergunta: a senhora quantos filhos tem?
Obtive a seguinte resposta:
? "oh! meu senhor, eu, graças a Deus, filhos já tive dezassete,
mas agora já só tenho onze, saiba meu senhor que isto das crianças
é uma coisinha que morre muito". Resposta-comentário impossível
de esquecer.
Diremos que de morte morrida morrem hoje em Portugal menos crianças
do que há trinta anos. Mas de morte morrida e de morte matada continuam
a morrer crianças de mais quando olhamos o mundo na sua globalidade.
As crianças continuam a ser uma coisinha que morre muito, de todas as
formas de morte, mas sobretudo, da morte para o conhecimento e o saber.
Depois do 25 de Abril, como aconteceu com muita gente, tive ocasião
de participar em várias iniciativas a que chamámos de acção
cultural. Lembrei-me nessa altura, muitas vezes, da resposta-comentário
daquela senhora em 1968. É que olhando à volta me parecia que
mais do que despertar paixão, amor, amizade pelo conhecimento e a cultura,
com frequência a "acção cultural", pela falta
de competência com que a desenvolvia-mos, semeava o desinteresse, a desilusão,
a morte das crianças e dos adultos para o conhecimento, ou a morte deste
para eles.
Não falo hoje em morte para o conhecimento ? é demasiado forte
? mas falo em vacinação contra o desporto, a música, o
teatro, o conhecimento em geral, sempre que o ensino destas áreas é
entregue ao voluntarismo e amadorismo dos "ensinantes". Neste sentido,
no mundo da educação, não serão só muitas
crianças e jovens que continuam a ser vacinados contra o saber, mas também
alguns professores têm sido frequentemente vacinados em "acções
de formação" ? ou de vacinação?
Voluntarismo, improviso, amadorismo e a confusão que resulta deles.
A formação inicial e continua dos educadores e professores, nos
últimos 25 anos, estão marcadas frequentemente por estas atitudes
e práticas. Uma formação mais ditada pelas paixões
? ou paixonetas? ? de alguns formadores, do que da necessidade dos formandos
de darem seguimento aos amores e amizades que foram tecendo. Uma formação
com implicações no modo de estar, na confusão, na falta
de coesão e no ânimo e desânimo de muitos educadores e professores.
Práticas de formação a repensar. Se o não fizermos
também muitos de nós vamos morrendo para o conhecimento e naturalmente
para o trabalho. Também vamos sofrendo as consequências das inúmeras
vacinas, sendo natural que nos sintamos atarantados. Tão atarantados
que, sem darmos por isso, confundimos ensino com vacinação.
Na escola de hoje as crianças e os jovens continuam a ser uma coisinha
que morre muito. Não de morte matada ou de morte morrida como aconteceu
às crianças da senhora da Lapa, mas das vacinas a que agora estão
obrigadas.
Nas escolas ? públicas ou privadas ? vacina-se muito. Não tanto
por culpa dos professores que continuam a não ser donos do seu destino
profissional e do destino das suas escolas, mas por culpa de um sistema que
teima em premiar o improviso, a moda, o palavreado, o faz de conta, o jeitinho
para ensinar, as "experiências giras", o voluntarismo e o amadorismo
a todos os níveis.
Será de pensar nestas coisas correndo o risco de ficar ainda mais atarantado?
Pois não é tudo normal e natural? Isto das crianças será
sempre uma coisinha que morre muito. Não é assim? Aprender não
é para todos. Pobres e burros sempre os teremos. A escola sempre se organizou
assim. Sempre foi assim. Sempre se ensinou e aprendeu assim. Os educadores e
professores também foram e são vacinados assim. O país
é assim. O mundo é assim. A vida é assim. Nós somos
assim. Que havemos de fazer?
Férias em Agosto. Não é assim?
José Paulo Serralheiro
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