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Reforma Curricular no Ensino Secundário

OBJECTIVO: ACABAR DE VEZ COM A LITERATURA?


1. Para quê uma nova reforma curricular a meio de uma reforma em curso?

Mais do que optar por nova revisão do sistema educativo, neste momento, numa clara política de contra-reforma que se repete há 20 anos, julgo que era preferível optar por uma revisão pensada, participada e amadurecida. Uma vez mais, quando nem sequer se deu a oportunidade ao reajustamento curricular iniciado em 1997 de poder ser auto e hetero-avaliado, já se prepara uma nova revisão curricular, na prática, para que se possa, a exemplo de revisões anteriores, marcar uma posição política, com decisões que revelam um esquecimento epistemológico e pedagógico da realidade da sala de aula.

No quadro específico da reforma curricular do programa de Português para o Ensino Secundário, discordo em absoluto da substituição da disciplina de Português pela de Língua Portuguesa nos cursos gerais, restando, qual espécie em vias de ab-rogação, a Literatura Portuguesa em exclusividade no Curso Geral de Línguas e Literaturas. O pressuposto assenta num equívoco histórico que exigia um debate alargado e científico, que não existiu, porque em nenhum lado se justifica 1) porque é que um aluno precisa de chegar ao Ensino Secundário para aprender língua portuguesa; 2) porque é que a literatura não serve para formar linguisticamente um aluno; 3) porque é que só os alunos que prosseguem estudos literários necessitam de uma formação literária; 4) porque é que a literatura portuguesa não pode ser considerada uma parte fundamental da formação cultural nacional de todos os indivíduos que estudam neste nível de ensino.

Quando esperava que a comunidade dos profissionais do ensino da literatura, em que me incluo, reagisse de forma audível, verifica-se um estranho silêncio e uma indiferença que nos deve preocupar. Mesmo os raros pronunciamentos sobre o crime curricular que se está a premeditar são tão preocupantes como o crime em si. Por exemplo, não deixa de ser assombroso o parecer da Associação de Professores de Português sobre a Revisão Curricular do Ensino Secundário, quando declara: "Quanto aos programas das disciplinas de Literatura Portuguesa e de Literaturas de Língua Portuguesa, espera-se que eles não venham a revelar-se programas de História da Literatura". Afinal, o que tem de prejudicial a história literária? Alguém me explicará quais são os vícios, iniquidades e perversidades que se supõe adquirirmos com o estudo da história da literatura portuguesa?

Sabendo que cerca de 77 por cento da população adulta portuguesa apresenta níveis de literacia escrita baixos, de acordo com o resultado de testes aplicados à população adulta em 1998 que colocam os portugueses entre os menos literados dos países da OCDE, não nos parece que tal literacia se adquira no Ensino Secundário. A opção da revisão curricular é uma prova de desacreditação de todo o ensino do Português no nível básico, porque se infere claramente que esse sub-sistema não foi capaz de formar linguisticamente os seus alunos. Por outro lado, a omissão da Literatura Portuguesa como formação geral para todos os cursos vai certamente conduzir, daqui a alguns anos, à mesma conclusão que muitas empresas norte-americanas entretanto chegaram, após experiências idênticas de negligência da formação literária: os profissionais dessas empresas são muito bons tecnicamente, mas não têm cultura geral (incluindo a literária) suficiente para tomar decisıes não técnicas. Mais grave do que isto parece-nos a sentença de morte que é passada ao património literário português, com o falso pressuposto de que não é possÌvel ensinar a matriz da nossa língua com um programa de Literatura Portuguesa. Deixem-me recordar uma obra importante, que os programadores portugueses parecem desconhecer, "The Closing of the American Mind: How Higher Education Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today's Students" (1987), de Allan Bloom. Amanhã, se vingar a tese reformista em questão, vamos ter de escrever algo como: The Closing of the Portuguese Mind: How Secondary Education Has Failed Democracy and Impoverished the Souls of Today's Students, que em tradução livre dará: A Clasura da Mentalidade Portuguesa: Como o Ensino Secundário Desiludiu a Democracia e Empobreceu o Espírito dos Alunos de Hoje (2003-...). O facto é que, em matéria de reformas curriculares, sempre copiámos os piores exemplos e fizemo-lo sempre de forma tardia. Não seria de reflectir sobre o resultado obtido nos Estados Unidos, a partir da década de 1970, sobre a questão da chamada (i)literacia cultural? Foi E. D. Hirsch, Jr. quem diagnosticou o problema em 1987, com um livro muito lido e comentado (Cultural Literacy), onde conclui que os Estados Unidos haviam cometido um "tragically wasteful mistake". Se sabemos antecipadamente qual vai ser o resultado desta reforma no ensino do Português, outro "erro trágico desnecessário", porque não a abortamos enquanto é tempo?


2. Os principais problemas do actual ensino do Português

Sintetizaria assim os principais problemas do actual ensino do Português do 10º ao 12º anos de escolaridade: 1) A proliferação e eternização de manuais esp˙rios, a-críticos, sem qualquer tipo de avaliação, que os professores insistem em tomar como o Livro dos Livros da aula de literatura. 2) A ignorância do aparato crítico relevante das obras estudadas. A tendência geral é para o recurso sistemático a obras de cultura geral (invariavelmente, a História da Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e António José Saraiva e o Dicionário da Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho) para introduzir criticamente autores e épocas, omitindo os respectivos textos teóricos essenciais; outra tendência muito discutível é a da concentração da investigação possível sobre um dado autor em dados unicamente biográficos. 3) A enorme diversidade de abordagens subjectivas e descontextualizadas dos textos literários, sem obediência a nenhuma norma comum a todos os profissionais do ensino do Português, embora sempre respeitando as diferenças e o diálogo epistemológico sem o que não há verdadeira aprendizagem literária. 4) A quase ausência de práticas de escrita orientada, sem ser em obediência a livros de auto-ajuda que poluem por todo o lado a didáctica da literatura portuguesa. 5) O desinteresse ou a falta de disponibilidade dos professores para a leitura extra-curricular, condição fundamental para a formação científica de um profissional do ensino da literatura nacional. 6) A desglobalização dos cursos de formação inicial de professores de Português, com uma insustentável diversidade de modelos de formação que variam de instituição para instituição, sem um tronco comum definido e avaliado superiormente até ao momento.


3. A falsa questão da excessiva extensão dos programas

Sendo co-responsável pelo actual programa de Português para o Ensino Secundário e autor de manuais escolares para esta disciplina, não posso deixar de protestar pelo que que me parece ser um enorme equívoco: a opinião generalizada sobre a extensão do programa, como obstáculo a um ensino-aprendizagem eficaz. Entendamo-nos, nenhum programa de ensino pode governar totalmente o processo de ensino-aprendizagem de uma disciplina; nenhum programa de ensino pode resumir-se aos sumários das aulas que hão-de caber num ano lectivo; nenhum programa de ensino pode ser construído como referencial único para o currículo, que deve estar aberto a tudo o que acontece na aula e fora dela. Um programa é um menu que não serve todos os pratos de uma vez. O utilizador escolherá o melhor prato para a refeição do dia, introduzindo os ingredientes complementares que julgar por bem encaixar. Quando nos queixamos da extensão de um programa de ensino devemos antes queixarmo-nos do conjunto de conteúdos que a Tutela impõe como obrigatórios num dado ano lectivo para o conjunto do País. Naturalmente, deverá sempre existir uma selecção tutelar e referenciadora, para que toda a comunidade de alunos possa estudar uma matriz comum, que corresponderá ao património essencial da literatura nacional, e para que um exame nacional possa aferir os mesmos conteúdos para todos os examinados. Se um programa de ensino for construído numa banda estreita, todos se vão queixar da falta de conteúdos para preencher o ano lectivo, por um lado; por outro, abre-se a porta à total arbitrariedade na selecção canónica do corpus literário, para preencher essas lacunas, o que significaria, na prática, que existiriam tantos cânones quantos os professores de literatura. Se num nível superior de estudos esta tese é absolutamente defensável, e é isso que acontece nas universidades, não me parece que, a este nível de iniciação aos estudos literários, tal possa ser aconselhável. Tudo isto não significa que um programa de banda larga, vulgo "programa extenso", seja impeditivo de o professor-utilizador poder introduzir outros textos para além dos que são previamente indicados. Uma vez mais, tudo depende do bom senso na definição dos conteúdos mínimos obrigatórios e esse não é um dever do programa, de nenhum programa.

A literatura é o suporte mais nobre e privilegiado da língua, por isso nem sequer se justifica a inclusão nos manuais de Português de informações gramaticais e linguísticas completas ou exaustivas, quanto mais a total exclusão do estudo sistemático da história literária nacional. A história das reformas curriculares, no século XX em Portugal, devia ensinar-nos algumas lições. Por exemplo, o programa de Português de 1991 seguia uma lógica de organização temática das obras literárias e culturais. Todos os manuais que daí saíram improvisaram estruturas internas com base nesse princípio arbitrário. Entre 1991 e 1997, estudou-se literatura portuguesa da seguinte forma: num só perÌodo escolar (dois/três meses), era lida (?) toda a história da poesia portuguesa, desde os trovadores medievais a Eugénio de Andrade, tendo como denominador comum não o percurso histórico (de oitocentos anos!) que se inscreve entre os dois limites, mas uma escolha arbitrária de textos ligados à temática do mar, do amor ou da saudade, conforme os gostos. É a esta arbitrariedade que queremos voltar?


4. Ensinar língua portuguesa ou literatura portuguesa no Secundário?

Sejamos claros: os actuais programadores são fundamentalmente linguistas, que assumiram publicamente que o ensino da Língua Portuguesa é prioritário no Secundário, porque não reconhecem à Literatura a capacidade de formar linguisticamente os indivíduos. Não conheço argumento mais falacioso. Primeiro, porque eles próprios, linguistas se formaram com a Literatura; segundo, porque aqueles que melhor dominam a Língua Portuguesa são ou foram criadores de textos literários; terceiro, porque ninguém consegue aprender a sua própria língua sem o conhecimento profundo da literatura dessa língua. Se o estudo da literatura é um caminho que não conduz ao bom domínio da língua materna, explicai por que é que a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, obra única de referência na Língua Portuguesa, opta em exclusivo por exemplos literários para ilustrar todas as ocorrências gramaticais?

Quer a didáctica da literatura quer a própria literatura constituem exercícios naturais das funções vitais da vida cognitiva, fazendo uso de todas elas: a percepção externa do mundo sensível e dos seus fenómenos corresponde à criação textual do autor; a consciência corresponde ao conhecimento do eu textual (todos aqueles que podem representar esta identidade: autor, narrador, personagens) e dos seus actos; a razão corresponde ao trabalho de leitura textual, facilmente identificado no trabalho crítico do estudo das relações necessárias entre os sentidos de um texto, das identidades, causalidades, finalidades, leis e princípios de significação. A percepção externa e a consciência são funções experimentais que competem aos criadores artísticos; procedem por observação do mundo, exercendo sobre ele a imaginação e a memória criativa e dão-nos dados para o conhecimento em forma de conhecimento. Estaremos em condições escolares de poder abdicar de tudo isto em nome de uma política de regresso às bases linguísticas num sub-sistema de ensino que já as devia ter adquirido?

Podia ter apresentado aqui facilmente uma boa colecção de citações sobre as virtudes da literatura e do seu ensino aos jovens, recordando testemunhos milenares. Não o faço propositadamente, porque quem tem que se explicar é quem tomou a decisão de separar o ensino da língua do ensino da literatura. Quem nos deve a todos uma explicação, começando pelo Ministro da Educação, é quem decidiu que o conhecimento e o estudo sistemático da literatura portuguesa é prejudicial à formação cultural dos jovens portugueses, a ponto de obrigarem a maior parte dos futuros alunos do Ensino Secundário a saberem nada sobre a história literária do seu País. Expliquem lá todos, bem explicadinho, por que razão é que querem acabar de vez com a literatura!

Carlos Ceia
Universidade Nova de Lisboa


  
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Edição:

N.º 103
Ano 10, Junho 2001

Autoria:

Carlos Ceia
Univ. Nova de Lisboa
Carlos Ceia
Univ. Nova de Lisboa

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