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Lido e Pensado

Os que nos nossos dias tudo explicam com base nas teorias da supremacia do mercado, procuram convencer-nos que tirar a cabeça de dentro da água é realmente muito perigoso. De facto, do ponto de vista de tais teóricos, só um perigoso extremista suicidário faria uma coisa dessas. É de facto um sinal de saber e inteligência política manter a cabeça dentro de água.

É verdade que nos afastamos da margem. É verdade que só vemos mar. É verdade que o mar não está calmo. É verdade que a fúria da água nos abala um pouco a alma. É verdade que a fúria das águas obedece a normas. É verdade que há um apelo a que nos comportemos dentro da normalização. É verdade que para não termos problemas é aconselhável fazer o que os outros fazem. É verdade que o poder tem mesmo muito poder. É verdade ser prudente aceitar o poder. Ainda assim, face a todas estas verdades e a estas e outras circunstâncias da vida actual, o único barquinho para onde parece ser aconselhável saltar é o barquinho da lucidez, onde tudo se pode repensar sem preconceitos, mesmo que isso implique viajar de fora solitária. Quem sabe? Talvez no percurso se encontre um náufrago.

De uma maneira ou de outra quase todas as religiões assumem o jejum. Mas as religiões fixam os períodos em que os devotos devem jejuar. Para meu espanto não acontece o mesmo com a religião que brota do capitalismo neoliberal. Os defensores das leis do mercado passam a vida a pedir-nos para jejuarmos de forma permanente em nome do desenvolvimento, da produtividade e da modernização.

O problema da gordura e do emagrecimento atravessa a sociedade actual em vários domínios. Um é a moda. Mas a política não lhe fica atrás. Os donos da propriedade privada e do controle do mercado passam a vida preocupados com a elegância do Estado. Reclamam diariamente que o Estado-Providência perca gordura, perca substância. Receiam que um Estado-Providência bem nutrido venha a sofrer de síncope cardíaca. É por isso que reclamam que essas gordurinhas sejam transferidas para o Estado-Moralista, o Estado-Prisões, o Estado-Repressivo... e o que sobrar que vá para a engorda das empresas privadas porque magras só devem ser as públicas.

Léo Ferré disse, numa das suas canções, que para se vender a infelicidade, basta encontrar a fórmula certa. Nesta economia de mercado em que vivemos a infelicidade é um produto altamente lucrativo. Ou não é?

A Revolução Francesa foi o diabo. Abriu portas ao atrevimento do povo. É verdade que deu azo a muito abuso e disparate. Mas o saldo final foram dois séculos de conquistas sociais na Europa e noutras partes do mundo. Desde que caíu o Capitalismo de Estado, na URSS, o capitalismo neoliberal tem-se vingado a bom vingar. Não se querem vingar apenas do tempo da guerra fria. Querem vingar-se de dois séculos de conquistas sociais e democráticas que a Revolução Francesa inaugurou.

Na actual correlação de forças pouco resta para além do barco da lucidez. A não ser que os defensores dos interesses do trabalho descubram que também têm de investir em jornais, rádios e televisões.

José Paulo Serralheiro

  
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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