Para as crianças do Instituto D. João V de Louriçal e para a sua Professora Rosa Freire

1.Abertura com palavras.

Nem sempre a palavra desabamento é usada para falarmos em crianças. Mas, sempre sabemos que ensinar uma criança é construir um adulto. Porém, desabar até me parece conveniente e adequado. Ao longo dos meus estudos de pequenos e pequenas em sítios como Beira Alta, Trás-os- Montes, Alentejo e Lisboa em Portugal. Ou, os meus eternos estudos de crianças da Paróquia de Vilatuxe de Pontevedra na Galiza e os meu reencontrados estudos da infância Picunche, o clã Mapuche do Chile e Argentina, bem como os do bairro de  Livingstone na Escócia, tenho observado directamente que os pequenos são desfeitos para incutir dentro das suas mentes conceitos necessários para reproduzir as suas vidas, interagir com outros e entender o contexto sócio histórico e económico da sua geração. Apenas que este processo, como o tenho denominado [1], é desencontrado: ensinam às crianças adultos que viveram como crianças em época diferentes a da criança e o adulto de hoje. Épocas sem tempos, canções sem palavras. Uma cronologia desfasada não apenas no tempo, bem como nos costumes e nos conceitos, nas ideias e na organização da vida social. A criança deve ser desabada para emergir em adulto. Lentamente, ao longo dos ciclos de   vida, como Melanie Klein tem referido na sua obra [2] ao narrar a inveja e gratidão dos pequenos para com os adultos ou mesmo os sentimentos entre eles. Ou, ainda, como Alice Miller diz [3], a batalha estabelecida entre o adulto e a criança que convivem dentro de uma mesma pessoa ao longo de toda a sua vida. A criança é apenas desabada e as sua partes, antigas componentes de uma outra entidade, recompõem-se em um ser que nos denominamos adulto [4]. Adulto, essa canção com palavras de opção para lucrar, investir, saber, orientar, mandar e, às vezes, punir. Quase que diria punir para a maior parte das vezes que se quer estabelecer uma correlação entre o que se estima tabu ou proibido para os pequenos subordinados e o incentivo que o adulto estima é a forma de orientar o futuro adulto entre os seus pares concorrentes. Concorrência a existir dentro da nossa sociedade em forma de cultura ou conceitos e formas de ser, estimado comportamento para lucrar e reunir recursos para, um dia, a infância de hoje seja capaz de ser feliz por meio da posse de bens que lhe permitam ser simpático e agradável aos outros com os quais interage. Interacção necessária para o objectivo da vida: trabalhar e dividir o trabalho entre todos na vida social. 

2. O Adulto, minueto.

Longe da mim inventar o desabamento de uma entidade para se converter em um outro ser destinado a gerir o mundo. O mundo largo da vida social ou o mundo que lhe coube escolher e formar por simpatia com outros, ou separar-se por antipatia. A ideia já tinha sido defendida por Adam Smith em 1756 [5] e organizada dentro de um programa denominado hoje em dia de Economia Clássica no seu livro infracitado. Os dois únicos que escrevera na sua vida, mas de uma imensa importância, até ao ponto de serem as "bíblias" da teoria económica que regem as nossas vias e à qual devemo-nos de "agarrar" para termos bens e sermos adultos felizes. Ideias às quais muitos autores se opuseram ao longo do tempo, mas que vou negligenciar por conhecidos e pelo espaço que tenho. Adam Smith  faz, praticamente, um programa para o ser humano, retirado do seus estudos das formas de reprodução de muitas nações do mundo. Em síntese, advoga a partir dos filósofos gregos e dos da sua época, que todo o ser humano tem duas alternativas: ou sofre e cala para não afugentar com a sua tristeza e miséria as pessoas que precisa para dividir com eles o trabalho social de bens utilizados para ficar dentro da história dele e os seus familiares; ou, espalha as suas tristezas e luto entre os seus parceiros na lide da vida. Argumenta que nenhum adulto fica amigo de quem sofre e fica a remoer, de forma sistemática, os seus sofrimentos. O ser humano nasceu para trabalhar na companhia dos outros e o luto é privado e íntimo para si ou para compartilhar com  a ou as pessoas da sua cercania social e emotiva. O adulto deve optar. A opção é feita na base do alinhamento social estruturado para a construção  dos recursos humanos que permitam ao adulto trocar, procurar, vender, aprender, habilitar e outras artesanias ou habilidades. As primeiras letras que todo o adulto deve ter são as da economia do seu país e as da contabilidade do seu lar e da sua nação [6], tal e qual fosse feito pelo Papa Alexandre Médici no Século XIV, ao organizar uma escola de saberes de cálculo e saberes aritméticos, como relata no seu texto Gordon Childe [7] ao constatar que a construção do saber está na base da aprendizagem do cálculo e da opção maximizada para investir. O adulto fala, de forma sistemática, de poupança, trabalho, descanso, análise, lucro. Tal e qual o analisa Jack Goody, esse o meu velho professor de Cambridge no seu texto The logic of writing and the organization of society [8]. Os conceitos do adulto são de cálculo e de opção, especialmente dentro da população com menos recursos que deve manipular para fazer estratégias económicas com a sua lógica dependente da natureza de duas maneiras: a solidariedade social para dividir a produção e a necessidade de entender como produzir para vender habilitações ou bens. Linguagem esta à qual está muito pouco habituada a criança a usar. Especialmente porque nas escolas e nos lares é-lhe dito "caluda" quando se estima o cálculo para seguir dentro de História com subsistência ou bem-estar.

3. A criança. Sonata.

É desabada. A criança, aceitem ou não os adultos, calcula. O seu cálculo vê-se no jogo e nas brincadeiras. O pião mede o tipo de solo sobre o qual se brinca: se é de areia, a pua deve ser curta para não se enterrar; se é de pedra, cumprida para bater ao outro melhor. A macaca é a aprendizagem da distância e do equilíbrio e da concorrência de quem pode melhor do que outro saltar mais rápido e virar o corpo sem cair. E outros. Os berlindes ensinam a procura de associação para um grupo, aritmeticamente, derrotar o outro. A criançada vai à escola pela obrigação imposta em casa e, em casa, pela lei. O objectivo dos pequenos é brincar no recreio e fazer moca dos mais fracos, bem como de terem companhia que não manda calar ou pune: entre parceiros, aprende-se a bater e a defender-se dos mais fortes com engenho e inteligência. A primeira interacção dos mais novos com o mundo de fora, é com a mãe, em toda a cultura do mundo. A seguir, a casa, os parentes e os vizinhos. A geografia social é simples e tem um traçado de Séculos. Com as suas mudanças. Diz Ariés [9] que não havia infância na idade media. Tratava-se de desenvolver aos seres humanos o mais depressa possível  por causa da curta duração da existência até há pouco tempo atrás. A vida tem-se prolongado e tornado mais complexa com os televisores, como todo o mundo sabe, mas, especialmente, com os computadores e as formas de criar o real configurado. Por outras palavras, inventar o real a partir de ideias e conceitos já programados que libertam à infância de hegemonia do adulto. O saber infantil passa a ser resultado de aventuras desenvolvidas dentro de magia do computador. Magia que o não é para a criança. Essa virtualidade, é a realidade por meio da qual é possível calcular alternativas à altura do seu entendimento. Porque, e apesar de existir um computador em cada escola e em vários lares, a criança anda ainda a tactear o mundo, como gosto dizer. É bem possível, como tenho observado ao longo de 35 anos de trabalho de campo, que os mais novos entendam o cálculo bem antes do que a sua genealogia ou a sua história ou a sua fisiologia. A sociedade não guarda segredos nas opções, apenas nos conceitos. E esta é a parte mais complexa e delicada. As idades da vida vão deslocando de um a outro ciclo, uma criança capaz de manipular o real virtual sem sentimentos emotivos. Estes ficam guardados apenas para as pessoas próximas que os fizeram e os criaram e, um dia, para as pessoas ou a pessoa que pode acompanhar na vida. As emoções têm definido essa entidade denominada criança, supostamente não capaz de se responsabilizar das suas capacidades e de reconhecer as habilidades dos outros ou o seu contexto; emoções não orientadas pela racionalidade lógica indutiva e dedutiva esperada do adulto, ou dessa criança, quando adulto [10]. O adulto espera ainda um comportamento subordinado dos mais novos ao conhecimento e saber de orientação dos mais velhos. No entanto, a criança distingue entre o que o adulto entende e aquilo que é apenas do seu próprio saber, como o imaginário. Durante um episódio do meu cumprido trabalho de campo na Beira Alta, perguntava aos pequenos quais eram os seus sonhos. As raparigas de 7, 8 e 9 anos, contavam, as de 12 e 13, iam calando. Os rapazes pareciam não terem outros que não fossem os dos jogos com os seus amigos ou lutas com os pais. Tal e qual Melanie Klein relata no texto citado. Os mais pequenos ainda, de três ou quatro anos, inventavam "estorias" retiradas de medos à escuridão, contos para crianças e cenas da vida real. Este conjunto de sonhos, desenhos e aventuras e brincadeiras, fizeram-me entender e à minha equipa, de que os pequenos eram capazes de entender o real desde que este fosse explicado com palavras do quotidiano, sem essas sintaxes ou lógicas da língua que tenta espalhar o saber de forma igual entre todos, sem reparar nas histórias de vida de cada criança. Histórias de vida fundamentais para o docente ou professor, entender dentro de qual contexto vai cair o seu processo de ensino. Processo de ensino abstraído da vida quotidiana que acontece ser a vida real. Vida real que, temos observado, serve de base para comparar com a vida abstracta que a escola deve ensinar por mandato da lei. Com um programa feito por especialistas que nunca viveram com os mais novos que devem incutir dentro da vida social.

4. Coda final.

Em todos os sítios onde temos investigado a vida dos seres humanos e observado os seus objectivos, quer na Europa, quer na África, quer ainda na América Latina, que não tenhamos começado por entregar um caderno e um lápis a cada criança para perguntar pelas origens da sua sociedade particular. Investigar a memória social local, tem sido o nosso maior empenhamento ao longo dos anos. E as crianças, acabam por perceber que os seus adultos sabem menos do que eles esperavam, no campo da interacção social, a que é muito fixa e datada e compartilhada por amizades, rituais e parentescos chegados ou vizinhanças. Em todos eles, temos feitos Ateliers de Tempos Livres para brincarmos à família, ao médico, à doença, à procissão, e outras actividades, como a escola. De boca aberta fiariam os professores se soubessem como, no entender infantil, eles são pessoas para punir e castigar, transferir ideias que nada têm a ver com o que eles sabem ou lhes interessa.  Longe de mim dizer que, em consequência, o modelo infantil deve  orientar os programas. Mas, um enfático sim para convidar aos professores a andar pela geografia e o perímetro do bairro ou aldeia a entender primeiro a origem do grupo, passar depois ao cálculo e, apenas mais tarde, começar com as detestadas letras de livros que inventam histórias que acontecem em outros países, tal e qual analisei num outro texto meu [11], ao citar o ensino da estação de la Gare du Nord em Paris, as crianças que nem tinham andado de comboio. Não é minha intenção chamar a atenção ao Ministério de Educação: a minha equipa e eu estamos já fartos de investigar, comparar e escrever e enviar textos subvencionados pelo Ministério da Ciência, antes também da Educação e Ciência, como para esperar sermos ouvidos. Os governantes fecham-se no seu saber não actualizado a governarem durante anos, enquanto a realidade muda sem eles saberem: um perito em saber escolar deve dedicar apenas um tempo ao Governo e os seus lobbies para, a continuação, seguir com a sua pesquisa. Tal e qual Joaquim de Azevedo [12] fez ou José Manuel Prostes da Fonseca cujos textos dou por citado. Bem como dou por esperado que esses excelentes investigadores deixem a Secretaria e o Ministério da Educação para nos continuarem a dizer o quê em educação. Talvez os Ministros e Secretários de Estado entendam que não se pode governar um país, voir, entender a epistemologia da criança, sem andar no terreno com as suas equipas e não tentar aplicar políticas apreendidas em tempos passados, bem antes da realidade virtual passar a ser  parte do treino na vida da nossa criançada.

Se assim não for, que sejam treinados para serem governantes: saberem ouvir os investigadores e, especialmente, esses investigadores que convivem dia a dia com as crianças e as suas famílias, às quais até eles próprios pertencem. O poder seduz e mal cria às pessoas, como foi dito por Machiavelo [13] e Frederico de Prussia [14] que souberam ser líderes no seu tempo. O desabamento da criança pode também ser causado por uma má gestão escolar. Em síntese, o desentendimento cronológico do saber, a diferente epistemologia, a ignorada epistemologia da criança e a falta de saber das suas histórias de vida, em conjunto com a pouca simpatia para o corpo docente de Portugal cujo orçamento é bem mais baixo em salários que no resto da União Europeia e dos outros Ministérios Portugueses, bem somo a falta de licenças para se prepararem em cursos especializados que ensinem o saber da criança, são vários dos factos a que a desabam. Não quereria eu chegar a ver o cumprimento da minha antiga profecia feita em livros [15] e que cito em nota de rodapé.

Raúl Iturra

[1] Iturra Raúl, 1994: "O processo educativo, ensino ou aprendizagem?" In Educação, Sociedade e Culturas N.º. 1, Afrontamento, Porto. Ver também Vieira, Ricardo, (1992) 1998: Entre a escola e o lar, Fim de Século, Lisboa; e Reis, Filipe, 1991: Educação ensino e crescimento, Escher, Lisboa.

[2] Klein, Melanie, 1932: La psychanalyse des enfants, Puf, Paris. Há versão Portuguesa em IMAGO, Brasil, 4 Volumes.

[3] Miller, Alice, 1983: The drama of being a child, Virago Press, Londres. Há versão castelhana de esta e outras obras da autora em Tusquets Editora, Barcelona, 1994 e seguintes.

[4] Vide Iturra 1997: O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral, Fim de Século, Lisboa;1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto; 2000: O saber sexual das crianças. Desejo-te porque te amo, Afrontamento, Porto.

[5] Smith, Adam, (1756) 2000: The theory of moral sentiments, Prometheus Books, Londres; e 1775 An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations, Routledge and Kegan Paul, Londres. De este texto original na minha posse, há versão portuguesa da Gulbenkian, Lisboa.

[6] Vide para este tema e definições: Iturra, Raúl (1991) 2001: A religião como teoria da reprodução social, Fim de Século, Lisboa; e Iturra, Raúl e Reis, Filipe, 1989: O jogo infantil numa aldeia portuguesa, Associação de Jogos Tradicionais da Guarda, Guarda.

[7] Childe, Gordon, 1925; The dawn of  western civilization, Knopf, Nova Iorque.

[8] Goody, Jack, 1988, op. cit., Cambridge University Press. Há tradução portuguesa em Livros Horizonte. E no seu de 1977: The domestication of the savage mind, CUP, especialmente Capítulo 5: "What?s in a list?"

[9] Ariés, Philippe, 1964: L?enfant et la vie familiale sous l?Ancien Régime, Editions de Seuil, Paris. Há versão portuguesa em Relogio D?Água, Lisboa, 1988.

[10] Vide Código de Direito Canónico, Cúria Vaticana, nas suas versões de 1911 e 1981 que define como idade da inocência à infância até os 7 anos de idade.. E as diversas emendas ao Código de Direito Civil Português, que muda as idades ao longo do tempo; a maior idade era aos 25 anos, hoje é aos 18 e se debate se não devia ser aos 16. Outras idades ficam "empatadas" por doença mental.

[11] Iturra, Raúl, 1990 b): Memória e aprendizagem- Insucesso escolar em Vila Ruiva, Escher, Lisboa.

[12] Azevedo, Joaquim, 1994: Avenidas da liberdade. Reflexões sobre política educativa, ASA, Porto.

[13] Machiavelo, Nicolás, (1513) 1983: El prícipe, Planeta, Barcelona.

[14] Frederico de Prússia o Frederico II O Grande, 1741: Essai de critique sur Maquiavel, revisto por Voltaire. Há edição portuguesa em Guimarães Editores, Lisboa, 2000.

[15] Iturra, Raúl, 1990 a): Fugirás à escola para trabalhar a terra, Escher, Lisboa. E: O caos da criança. Ensaios de Antropologia da Educação, Livros Horizonte, Lisboa, a sair em Maio de 2001.