No dia 10 de Fevereiro de 2001 assisti, no âmbito de um Seminário
Nacional promovido pela Federação Concelhia das Associações
de Pais do Porto, a um discurso proferido pelo actual Ministro da Educação,
Augusto Santos Silva, o qual, devido ao conjunto de ideias que o sustentaram,
sobretudo no que concerne à revisão curricular do Ensino Secundário,
constitui motivo suficiente de reflexão sobre o sentido da política
educativa da actual equipa ministerial relativamente a este nível de
ensino.
Exmº Sr. Ministro:
Confesso que só um ministro da Educação
me conseguiria irritar assim. Embora também deva reconhecer que necessito
de remontar aos tempos da senhora dona Manuela Ferreira Leite para tentar descrever
uma sensação algo parecida. A sensação de incomodidade
despertada pela arrogância de uma lição descabida, através
da qual ouvi um governante reclamar a sua condição de cientista
com o intuito de nos ensinar a distinguir factos de opiniões, para calar
as vozes críticas daqueles que nessa assembleia ousaram duvidar das médias
estatísticas que os Serviços do Ministério da Educação
elaboraram a propósito do ratio professor / alunos ou do ratio alunos
/ computador. Sr. Ministro, longe de mim duvidar da honestidade e da competência
desses serviços, mas creio que é legítimo considerar estranho
que alguém com as suas qualificações se tenha esquecido
de recorrer a uma medida tão importante como o desvio-padrão para
fundamentar o seu discurso optimista sobre as condições materiais
e logísticas que as escolas possuem para cumprir o seu mandato educativo.
Como vê, a minha capacidade de escuta e compreensão
foi desde logo posta à prova no início do seu discurso. Todavia,
decidi aguentar. Esperava ansiosamente o que V. Exª tinha a dizer sobre a revisão
curricular do Ensino Secundário, depois de ter escutado o Professor Domingos
Fernandes a confirmar a aposta na via da dualização curricular
do Secundário, a afiançar que os adolescentes deste país
teriam sempre a possibilidade e a liberdade de optar pelo tipo de cursos que
mais lhes conviessem e a defender, a pés juntos, que aquela revisão
curricular permitiria, finalmente, iniciar o processo de reabilitação
social e educativa dos Cursos Tecnológicos.
V. Exª confirmou todas as palavras do director do DES, mas
à liberdade de opção que este defendera, contrapôs,
antes, o princípio da igualdade de oportunidades, certamente porque sabe
que qualquer discurso meritocrático se constrói e se consolida
a partir da premissa da possibilidade individual das escolhas que o Professor
Domingos Fernandes enaltecera. Fora este pequeno pormenor estiveram ambos em
sintonia. Ignoraram os Cursos Gerais e o processo de avaliação
no Ensino Secundário. Apostaram num registo ambíguo que nunca
permitiu desfazer um equívoco nodal entre os Cursos Tecnológicos
e os Cursos das Escolas Profissionais. Ou seja, a irritação que
senti teve tanto a ver com o que V.Exª não disse, como com aquilo que
V. Exª foi dizendo ao longo de um discurso de uma hora e meia que começara
com a promessa de uma pequena intervenção de vinte minutos.
Nesse fim de tarde pude compreender, contudo, porque é
que V. Exª, enquanto Ministro da Educação, tinha participado num
debate televisivo com estudantes do Ensino Secundário ou até porque
é que iria escrever a carta aberta, que o "Público"
divulgou, a uma Sara imaginada, uma aluna a frequentar um pretenso e indefinido
10º ano de escolaridade. Percebi, então, que do ponto de vista da credibilidade
pública que necessita para implementar a revisão curricular do
Ensino Secundário, seria mais vantajoso polarizar a discussão
em torno das reivindicações publicitadas pelos alunos deste nível
de ensino: as aulas de 90 minutos, a implementação da área
da Educação Sexual, o 13º ano ou a extinção progressiva
dos "Numerus Clausus". Delimitando, deste modo, os termos do debate
em função das conveniências políticas do Ministério
que dirige, V. Exª não só garantiria uma presumível vitória
num combate desigual, como poderia continuar a iludir, aos olhos da opinião
pública, alguns dos principais problemas com que se debate, hoje, o nosso
Ensino Secundário. A imagem de abertura, rigor e competência técnica
que pretende transmitir construir-se-ia, assim, em função destas
duas operações essenciais.
Na cerimónia de encerramento do Seminário
Nacional promovido pela Federação Concelhia das Associações
de Pais do Porto, a estratégia de V. Exª manteve-se fiel aos princípios
acabados de enunciar, embora o seu discurso tenha adquirido tonalidades distintas
face àquele público específico. Assim, foi interessante
constatar como V. Exª, no seu discurso:
a) confundiu deliberadamente os exames nacionais do 12º ano
com as provas globais do Ensino Secundário, quando se sabe que estamos
perante instrumentos de avaliação distintos quer quanto às
suas finalidades escolares quer, sobretudo, quanto à sua importância
social. Enquanto os exames poderão ser, eventualmente, justificados pelo
facto de constituirem um instrumento necessário no âmbito do processo
de selecção e acesso ao Ensino Superior, as provas globais, até
prova em contrário, constituem um desperdício de energia de alunos
e professores, condicionam de forma negativa o desenvolvimento das actividades
lectivas, assumem-se, em última análise, como um anacronismo pedagógico
e só não são erradicadas porque importa manter a ficção
de uma pretensa e ilusória exigência académica que oculta
mais do que aquilo que revela sobre o desempenho escolar dos alunos;
b) defendeu a importância estratégica e o processo
de credibilização dos Cursos Tecnológicos no âmbito
do alargamento progressivo do Ensino Secundário, a partir da defesa dos
pressupostos pedagógicos que caracterizam os Cursos das Escolas Profissionais,
iludindo, contudo, o facto destes cursos se desenvolverem em escolas completamente
distintas, do ponto de vista organizacional e institucional, das Escolas Secundárias;
c) insistiu na necessidade da escola encontrar um outro tipo
de articulação com o mercado de trabalho, através de uma
argumentação que nunca problematizou o papel deste mercado no
âmbito do desenvolvimento dessa relação, o que constitui
um modo de pedagogizar uma problemática que diz respeito, sobretudo,
ao modelo de desenvolvimento e à dinâmica económico-política
da sociedade em que vivemos;
d) demonstrou uma atitude assumidamente crítica face
à disciplina de Técnicas Laboratoriais de Biologia (T.L.B.), designando-a
ironicamente por T.T.L.B. (Teoria das Técnicas Laboratoriais de Biologia),
para justificar o maior peso a atribuir ao ensino experimental nas disciplinas
de Física, Química ou Biologia. Não pondo em causa a bondade
da medida proposta, interrogo-me, contudo, quando ao modo como é que
os professores irão compatibilizar as exigências do ensino experimental
com os constrangimentos impostos pelas provas globais e os exames nacionais
relativos a essas mesmas disciplinas. Já não evoco a questão
das condições materiais necessárias para implementar tais
medidas, nem pergunto porque razão aqueles professores que transformaram
T.L.B. em T.T.L.B. deixarão de proceder de forma idêntica como
docentes daquelas disciplinas;
e) ignorou os Cursos Gerais, a sua falta de sentido educativo
e os problemas estruturais que os afligem. Ora, e reportando-me apenas aos programas
das disciplinas, não creio que o seu enciclopedismo, a especialização
precoce e superficial que os seus conteúdos estimulam ou a sua inutilidade
formativa possam ser minimamente equacionados, e muito menos postos em causa,
com o alargamento do leque das quatro opções existentes para as
sete opções propostas, agora, pelo Ministério da Educação;
f) não explicou porque é que se adia para legislação
posterior ao Decreto-Lei n∫ 7/2001, a regulamentação dos
sete Cursos Gerais e dos dezassete Cursos Tecnológicos; a homologação
dos programas das disciplinas; a definição das condições
de permeabilidade entre cursos que o director do DES foi enaltecendo como a
pedra de toque do processo de revisão; a definição do processo
de avaliação ou, entre outras, a portaria de habilitações
para a docência.
Sr. Ministro, reflectindo sobre o discurso proferido por V.
Exª não encontro razões para partilhar do seu optimismo sobre
o impacto da revisão curricular do Ensino Secundário. Quanto aos
Cursos Gerais estamos falados. Não será o alargamento do leque
de opções que resolverá os problemas que os afectam e,
ao contrário do que outros apregoam, até me parece que as áreas
curriculares não-disciplinares, porque enquadradas num ambiente curricular
eminentemente escolástico, dificilmente suscitarão experiências
educativas minimamente ˙teis e significativas. Bem pelo contrário,
poderão constituir até uma nova fonte de problemas que, espera-se,
o bom senso dos professores possa, mais uma vez, ajudar a minimizar. No que
diz respeito aos Cursos Tecnológicos, não creio que se possa subestimar
a complexidade do desafio a enfrentar. São necessários investimentos
avultados, importa compreender a dimensão das transformações
organizacionais que a implementação desses cursos acarreta, convém
legislar de forma adequada no que concerne à homologação
desses mesmos cursos, à qualidade dos programas das disciplinas e à
definição do perfil e das competências exigidas aos professores
que irão leccionar nas novas áreas a criar. Existem, igualmente,
outras condições a respeitar que dependem de decisões a
assumir por outros agentes sociais colocados a jusante da escola.
Poderá V. Exª garantir isto, Sr. Ministro ? Poderá
V. Exª garantir que o Ensino Secundário deixará de ser um espaço
de parqueamento que, por vezes, se transforma num espaço de insucesso
escolar e de insucesso pessoal de muitos daqueles que o percorrem ? Poderá
V. Exª garantir, igualmente, que o Ensino Secundário deixará de
ser percebido como uma etapa da vida escolar que o Ensino Superior acaba directamente
por sobredeterminar? E, finalmente, poderá V. Exª garantir, ainda, que
através do processo de dualização curricular em curso,
não se está a contribuir, afinal, para salvaguardar o processo
de elitização académica, naturalizando os pressupostos
culturais, pedagógicos e curriculares que o potenciam e criando, simultaneamente,
a ilusão de uma via alternativa que na prática nunca passará
de uma ficção para um número significativo daqueles que
optarem pelos Cursos Tecnológicos ?
Não, Sr. Ministro, não o poderá garantir.
E é exactamente porque sei que não o poderá fazer que me
senti tão incomodado com o tom de um discurso que frequentemente roçou
a intolerância.
Rui Trindade
Universidade do Porto
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