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"A paciência e o saber dos alunos"

Ex.mo Senhor Director do Jornal "a Página"

Gosto de ser surpreendido quando leio. Se possível de uma maniera positiva, quero dizer, crítica mas construtiva. No entanto lido muito mal com a sobranceria. Vem isto a propósito do artigo publicadado no jornal de que é Director o senhor José Paulo Serralheiro e da autoria do mesmo, intitulado "Novo paradigma no acesso à profissão docente". Artigo que não contestaria nem me chamaria especialmente a atenção, não fosse a derivação deste problema específico para a realidade global do ensino português e não fossem feitas umas achegas que considero injustas a alguns elementos da classe docente. Particularmente o período que passo a transcrever. "O que é também inaceitável é que todos os anos entrem e saiem do sistema pessoas que vêm experimentar a profissão (e quantas vezes a paciência e o saber dos alunos)?" O que está entre parêntesis é de facto tocante! Repito: a paciência e o saber dos alunos? (as reticências agora são minhas).

Confesso, então, o meu crime: sou professor provisório, desses que maculam a matéria-prima do ensino português, esses mesmos responsáveis pela iliteracia dos nossos alunos, pela sua violência, pelo facto de nas Universidades continuarem a não saber escrever e a ler pouco? e mal. Estes docentes mal formados, eventualmente feios, porcos e maus, garantiam há anos, em exclusivo, o chamado ensino recorrente. Ou seja, por essas cidades, vilas e aldeias, quem quisesse estudar após os quinze anos, aprender a ler, escrever, ou completar o 2º ciclo, teria de se acomodar a estas aprendizes de professor. Os outros, os especialistas, profissionalizados e com estágio, com os seus lugares garantidos dariam as suas aulas ( e dar é sobretudo uma força de expressão) de complemento em colégios privados, salas de estudo, ou até num ou noutro Instituto Superior privado, enfim, dignando-se a transmitir da redoma da sua sabedoria, alguns dos seus conhecimentos a meninos pacientes e também cheios de sabedoria, que não passassem as noites acordados a fazer pão, os dias a trabalhar a trolha ou nalguma fabriqueta têxtil, ou vergados sobre a terra de enxada em punho. Para ralé, dá-se ralé. Isto para não falar das viagens nocturnas dos pobre professores (in) profissionalizados, sem estágio e de carácter transitório (só estavam ali para brincar aos professores), o carro a atravessar o alto da serra sem se ver um palmo à frente do nariz, o saco cama e uma manta na mala de trás, as palavras dos meus alunos ainda a ecoarem na cabeça. "Sr Professor, olhe lá os javalis e os lobos que eles agora são mais que muitos com esta história dos Verdes" (atenção que as palavras são deles e não minhas, eu até sou um ecologista convicto) e o Miguel Torga a chagar-me constantemente o brio e a coragem lá com a história do burro.

Pois é sr Director da Página, temos que ter cuidado com o que escrevemos. O melhor é mesmo ficar pelo palavreado académico onde a realidade se esconde tão bem!

Pergunto: está o problema do ensino na estabilidade do corpo docente? Certamente que não, pelo menos de uma forma fundamental. Será por opção pessoal que os docentes não exercem as suas funções continuamente, sendo obrigados por factores alheios a situações de desemprego periódico? Estou igualmente certo que não. Lidarão eles com menos acerto em casos de violência dos alunos? Duvido (com letras muito grandes). Por vezes, neste caso, o manancial de experiência adquirida neste deambular pelas escolas, um conhecimento mais profundo das realidades do mundo actual, serão mesmo um ponto a favor do professor provisório como epíteto de "transitório". Carácter de transitoriedade imposta por todos aqueles que revêem nele a sua própria falibilidade, os seus erros, a futilidade das soluções e a inviabilidade dos processos.

Senhor José Paulo Serralheiro, quanta ignorância pude já constatar entre a sala de aula e a sala de professores! Quanto elitismo torpe e corporativismo reaccionário (e deixe lá o reaccionário, porque ao contrário do que possa pensar, o termo é cada vez mais actual) pude observar entre horas livres (muitas), horários incompletos (todos), intervalos intermináveis para a paciência e o saber de um professor que nunca o deixará de ser, escrevam o que escreverem, pensem o que pensarem. Terei todo o gosto que publique esta minha carta no seu jornal. Mas por favor não cortem nem amputem as suas frases como infelizmente o Jornal do Ministério da Educação já o fez quando elaborei um artigo sobre educação de adultos, tendo então omitido as partes em que se criticava o referido ensino.

Respeitosamente
Paulo Frederico F. Gonçalves
Professor Provisório do 2º ciclo do Ensino Básico

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães
Paulo Frederico Ferreira Gonçalves
Professor do 2º ciclo na Escola Básica S. Torcato - Guimarães

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