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Do darwinismo socioeducativo à comunidade solidária

Como sempre acontece, foi com solicitude que lemos o artigo desassossegado de João Teixeira Lopes (JTL) ? O "novo" conservadorismo, na edição de Março deste jornal. Também nós aproveitámos este espaço para pisar o terreno das "ligações perigosas" da violência com a escola nas sociedades contemporâneas.

Vivemos tempos inquietos. Um pouco por todo lado, o descontentamento alastra, mostra-se, torna-se audível: Seattle, Praga, Nice... Pior, os militantes contra-hegemónicos atrevem-se, desafiando os senhores do mundo, a pensar as alternativas em Porto Alegre. Parece, até, que têm alguns motivos, pois as coisas não vão lá muito bem: a "mão invisível" está com artrite, o Larry Ellison diz que a nova economia não existe, o Dow Jones e o Nasdaq não param de cair.

De tão gasto, no livro já não se deve conseguir ler a maior parte das páginas. Mas não há problema ? a receita é simples, curta e de fácil recitação, perfeitamente adequada aos tempos que correm, da informação instantânea, a consumir no intervalo de dois spots publicitários.

A economia não funciona? Falta mercado. Privatize-se! Os jovens não encontram emprego compatível com as credenciais escolares? Malditas leis de regulamentação do trabalho e da relação salarial. Liberalize-se!

O crime alastra? A culpa é desses intelectuais e teóricos de esquerda que nada percebem da natureza humana. Criminalize-se a pobreza! Proceda-se ao encarceramento dos pobres! Se, ainda assim, não for suficiente, sempre se pode recorrer aos conselhos desse "conservador com compaixão", feito Presidente pelo Supremo Tribunal, especialista em "despachar" com manifesto e cínico folguedo, na sua coutada do Texas, seres humanos, de preferência, vá lá perceber-se porquê, afro-americanos e hispânicos, todos pobres sem distinção.

Cá dentro anda tudo agitado. As manifestações e as greves sucedem-se. A economia abranda. A saúde, coisa pública trespassada pelos mais diversos (pequenos e grandes) interesses privados, continua a requerer cuidados intensivos. Nas escolas e nas universidades o descontentamento alastra: em Coimbra, os alunos fecham a cadeado a Faculdade de Economia para gritar bem alto o futuro que lhes espera: um lugar de caixa numa loja de uma qualquer cadeia de hipermercados, seis dias por semana, não mais de 80 contos por mês. Afinal, as credenciais escolares já não são recurso suficiente para garantir o salário para uma vida com dignidade e com ele assegurar a reprodução dos estilos de vida das classes médias.

Decididamente, o mundo entra-nos pela escola. A guerra civil de que nos fala Hans Magnus Enzensberger já chegou às nossas escolas. Ao estar dentro delas, dá um significado bem real à expressão 'escola democrática', tantas vezes usada. A guerra civil é, afinal, a manifestação acabada, fazendo uso das palavras de Boaventura de Sousa Santos, do colapso das expectativas e do próprio contrato social da modernidade.

Perante isto, o que faz o Poder? Estrábico crónico, ao mesmo tempo que endurece a legislação penal e reforça o aparelho policial, promove a ideologia securitária na escola, por via do reforço da disciplina, da autoridade e da vigilância sobre os filhos das classes sociais "perigosas", mas também sobre aqueles que, a elas não pertencendo, não se adaptam à competição, logo são "mercado-incompatíveis". Fatalmente, este caminho leva à segregação por escola destas crianças e jovens, tornando universal aquilo que foi imposto por ordem do lugar de residência ou da exclusão das turmas dos destinados ao sucesso por ordem dos gestores escolares. Em lugar de combater os aspectos mais iníquos desta (des)ordem económica ? a precariedade laboral, os baixos salários, o alargamento do tempo e a intensificação dos ritmos de trabalho, a exploração infame dos emigrantes, primeiro africanos, agora também do Leste ?, o Poder dedica-se afanosamente a promover a competitividade na escola, certamente a pensar na competição selvagem de 'todos contra todos' que os jovens vão encontrar quando ingressarem no mundo do trabalho. Poderia, ao menos, esclarecer que, por muito bons que sejam, não dá para todos. Está cheio! Como justamente denunciaram os alunos de Coimbra.

Resta reiterar que nós já escolhemos o lado do debate para "moldar e configurar toda uma civilização futura", a que se refere JTL. Debate que terá na Escola Pública Democrática, última fronteira do mercado, um espaço de intervenção decisivo. A ela competir-lhe-á, no sentido freireano da aprendizagem da cidadania, promover a discussão do mundo, em especial de tudo aquilo que diga respeito ao que Pierre Bourdieu cunhou como a "utopia (em vias de realização) de uma exploração sem limites".

O tempo do silêncio e da passividade deixou, de novo, de fazer sentido. Não possuindo ideias acabadas, da reflexão crítica sobre a realidade colhemos uma valiosa lição: a construção de uma utopia educativa faz par com a utopia social, adquirindo a resistência uma força renovada para levar a cabo o combate contra as desigualdades e opressões que atravessam as nossas escolas e a sociedade em que vivemos.

É urgente reinventar escolas e comunidades onde a consciência crítica e dialógica se traduza numa real equidade e justiça social, contra todas as formas de exclusão. Não podemos ignorar que a construção de comunidades reflexivas e solidárias, onde o conhecimento e a educação não são regulados pelo mercado, ajudam a descobrir a direcção e a fazer o caminho para uma efectiva coesão social no quadro de um desenvolvimento sustentável.

Américo Nunes Peres
Fernando Bessa Ribeiro

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

Américo Nunes Peres
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - Pólo de Chaves, Vila Real
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Américo Nunes Peres
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - Pólo de Chaves, Vila Real
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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