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Analisar a relação entre a escola, a cidade e a democracia, o papel e o valor da escola e dos professores na comunidade, e a relevância da formação cívica foram os grandes desafios propostos pelo Sindicato dos Professores do Norte (SPN) no seminário “Escola. Cidade. Democracia: Cidadania e Desenvolvimento Humano”, que decorreu em março, na sede do Agrupamento de Escolas de Matosinhos. António Teodoro, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Isabel Baptista, da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, e José Manuel Pureza, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, foram os oradores convidados para o encontro, que teve a participação de dezenas de professores – os “alimentadores de pessoas”. E de sonhos.
António Teodoro defendeu a condição humana e a dignidade universal dos seres humanos como pontos de partida para se entender a educação como um projeto de ação de justiça social, “justiça como equidade, justiça como distribuição de capacidades, justiça como reconhecimento”. O também antigo dirigente da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) falou da felicidade, da ideia de paz, da capacidade de vivermos juntos democraticamente, da busca pelo “inédito viável” e da esperança no futuro. “A nossa ação como educadores deve ser sempre em busca destes inéditos viáveis, nomeadamente na nossa ação com os alunos, para que possam ir mais longe do que o expectável.” Para António Teodoro é muito difícil ser-se professor se este não tiver sonhos. “Não acredito que se possa ser bom professor se se tiver uma atitude negativa na vida. Então pergunto: qual é o nosso sonho? Que sonho temos quando exercemos esta profissão?”, questionou, sublinhando que é tão importante o que se ensina como a forma como se ensina.
Isabel Baptista lembrou a educação como um direito humano, que “funciona como motor de transformação social”, o direito dos cidadãos à cidade e a necessidade de uma mudança de mentalidade. “Precisamos de uma mentalidade que olhe para o outro, que faça o acolhimento ao outro, que lembre os direitos do outro. No processo de hospitalidade, não perdemos a identidade, reforçamo-la”, frisou. De acordo com a diretora da PÁGINA, a escola tem um grande desafio pela frente que passa para afirmação da sua relevância como pedra basilar de democracia e do papel fundamental dos professores, enquanto profissionais do humano. “O grande desafio passa por colocar a educação no coração da comunidade, reconhecê-la como prioridade.” Isabel Baptista sublinhou que é nos professores que está o capital e alertou para a necessidade de promoção de uma cultura de aprendizagem. “Precisamos de escolas mais estimadas, mais valorizadas pelas comunidades. É a escola que precisa de se afirmar”, disse, adiantando que esta é uma “oportunidade de reinvenção para os professores”, para a afirmação da sua identidade profissional.
José Manuel Pureza recorreu a três séries televisivas – “Conta-me como foi”, “Lost/Perdidos” e “Teorias da Conspiração” – para estabelecer alguns paralelismos entre a escola do passado e a do presente, para alertar para a experiência de estarmos perdidos, “de não termos ferramentas para nos ajudarmos a encontrar um caminho seguro” e para chamar a atenção para a ideia de governação que tem como projeto tranquilizar os mercados. O deputado falou da “escola a quem se pede tudo”, a mesma que “tem sido objeto do projeto de ataque, de desvalorização da escola pública”, que também é a mesma a quem se atira “a responsabilidade por se encontrar a bússola que não temos”. Uma escola que tem “um peso esmagador” de responsabilidade social e a quem se “exige todo o tipo de formação”, seja ela rodoviária, sexual, para a cidadania... “Para tudo.” José Manuel Pureza apontou três focos a ter em conta na formação cívica: insubordinação (“apetrechar para ser crítico, para dizer não perante injustiças; não é formar para a impertinência barata, mas para a cara, a que dói”), inquietação (“formar para a cidadania tem de ser educar para um estilo de vida, para perguntar”) e participação (“educar para a cidadania”).
Maria João Leite (texto e entrevista)
Fragmento da imagem publicada na revista A Página da Educação 213

©Henrique Borges
ORA DIGA LÁ... José Manuel Pureza
Que relação existe entre Escola, Cidade e Democracia? Para as gerações que fizeram a sua escolaridade durante o fascismo, ir à escola era aprender a ler, escrever e contar. Mas nesse minimalismo de competências funcionais, estava implícita a fixação de um objetivo social: não criar competências críticas, não formar consciências inquietas. Quando a democracia mimetiza esse minimalismo, apostando no funcional, na aquisição de competências, e não assume a escola como lugar crucial da formação para a cidadania democrática (inquieta, exigente, responsabilizante de si e dos outros), é a democracia que se atraiçoa. Em democracia, a escola tem de ter a ambição de formar para esse caráter de que se fazem os democratas e não para um catálogo de bom comportamento e de sucesso individual.
Que papel tem a Escola na construção de uma sociedade mais justa? Receio bem que se criem equívocos terríveis sobre esse papel. É claro que a escola não pode passar ao lado da urgência ambiental ou do desafio do diálogo intercultural. Não pode, porque esse é o mundo em que os jovens estão e é nele que vão agir e usar as tais competências funcionais que referi. Formamos para agir e para o sentido do agir. Mas o meu receio é que a escola se fixe na tarefa de ensinar mais regras de cordialidade e de sustentabilidade do que animar a atenção crítica e exigente sobre a razão de ser destes problemas e sobre os mecanismos que a alimentam. O resultado será a responsabilização individual, mas o esquecimento do social. O que cabe à escola na transformação social é ajudar à formação de gente que se deixa devorar pela paixão do destino comum, como dizia Teilhard de Chardin. Só isso. E isso é tanto!
No seminário promovido pelo SPN, em Matosinhos, apontou três focos a ter em conta na formação cívica: insubmissão, inquietação, participação. São estas as linhas de ação que a Escola e os professores devem ter em mente? Nas sessões de boas vindas aos estudantes do 1º ano da minha faculdade, perguntamos sempre o que os moti- vou a escolherem o curso de Relações Internacionais. E, com pequenas variações, as respostas andam sempre à volta da vontade de mudar o mundo, salvar gente, por aí... Perante isso, o meu entendimento foi sempre que a minha responsabilidade é alimentar essa vontade e não secá-la, dotar os estudantes de instrumentos sólidos para realmente mudarem o mundo, salvarem gente, e não fazer deles gente cínica, tão cheia de instrumentos de análise que o resultado seja analisarem e não fazerem nada com essa análise. Conhecer para mudar e não para apenas conhecer – David Hume dizia que “tudo o que é pode não ser”. Neste sentido, no meu entender, a educação para o/no agir transformador deve ser o horizonte da escola. Isto é muito arriscado, claro, porque significa assumir o risco de formar para um entendimento da vida em que a norma, a ordem, a obediência não são fins supremos; e fazê-lo repudiando a facilidade do panfleto e do soundbyte. Quando falo em formar para a insubmissão, quero dizer formar para um ‘não’ inteligente e fundado.
Que importância atribui à relação professor-aluno? Cada professor identificará na sua experiência os momentos em que sentiu mais realizada a sua vocação (porque é uma vocação!). Talvez seja simplista, mas a personagem do professor Keating, do “Clube dos Poetas Mortos”, pode ser uma boa referência. Por duas razões. Primeiro, porque mostra um professor ciente da sua missão de formar gente e não de formar profissionais – quando, por exemplo, interpela os alunos com a demonstração de que o essencial não é a métrica, mas a poesia, ele põe em evidência que o técnico e o cognitivo são instrumentais e que fundamental mesmo é a vida. Em segundo lugar, porque essa missão nunca ele a desempenha com uma perda da noção do seu lugar, ganhando distância para não deixar que a cumplicidade se torne perversa e permitir que a autonomia do professor e dos alunos seja uma regra do jogo.
Disse que à Escola se pede tudo, Escola que também é atacada. Que contradição é esta? Na verdade, em Portugal, a escola – refiro-me à escola pública – tem estado sujeita a uma pressão contraditória. Por um lado, a sua desqualificação (em meios e em qualidade do estatuto profissional dos professores), enquanto pilar da igualdade com intensidade idêntica à do Serviço Nacional de Saúde. Os ataques de sucessivos governos à classe dos professores é a expressão mais insidiosa dessa desqualificação social. Ao mesmo tempo, porém, é à Escola que tudo se pede: formação para a cidadania democrática, ambiental, rodoviária, física, mediática, cosmopolita, cultural, económica... E por aí vai. A curricularização da vida está a ser, em larga medida, uma forma de demissão social, um pouco na linha daquele desabafo tão corrente “tenho uma grande esperança de que os jovens mudem isto”, voz de uma capitulação resignada ou de uma desresponsabilização individualista. Estabelece-se assim um dualismo entre Escola, onde é suposto ensinar-se a perfeição, e sociedade, onde continua a dominar o contrário do que se ensina. A tarefa coletiva é assumir que a transformação não é para acontecer no futuro, quando os meninos estiverem educados para ela e a imponham; é agora e é de todos.
Que retrato traça da escola atual? O banal é dizer que há projetos sensacionais nas nossas escolas, que a generalidade dos professores é de uma dedicação fantástica. E mais banal, ainda, é brandir estatísticas para mostrar como estamos a progredir. Mas, em contraste com esse discurso mais ou menos banal, que naturalmente contém verdades, há uma avaliação inquietante. A soma das estratégicas de híper-responsabilização social da escola e de desqualificação material e profissional de quem nela trabalha está a conduzir a uma tensão insuportável. O cansaço e a desmotivação que atingem tantos professores são expressão dessa conjugação de superexigência com infra meios. A qualificação da escola pública e dos seus profissionais é uma exigência maior ao poder político. Se não soubermos aproveitar as folgas orçamentais para esse investimento estratégico, prestaremos um mau serviço.
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