Zezé apropriou-se de processos curriculares para mostrar aqueles que passaram por processos de invisibilização, silenciamento e discriminação. As suas ações estiveram nos primórdios da política de cotas raciais nas universidades brasileiras.
Trabalhando com um acervo fotográfico na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em seus primeiros tempos (década de 60 e 70), produzido e guardado pelo fotógrafo J. Vitalino, me deparei com a presença em algumas fotografias de uma única professora negra. Fui, então, atrás da história desta pessoa, em tempos nos quais os negros em nosso país só “apareciam” se dedicados a algum esporte, em especial o futebol. Descobri que ela se chamava Maria José e era chamada de Zezé. Assim, com sua trajetória entrelaçada com a minha pesquisa, busquei através de fotografias (re)visitar os caminhos percorridos por esta professora em uma instituição de ensino superior marcada pelo racismo institucional e estrutural, na qual poucas mulheres negras ocupavam/ocupam cargos considerados de poder e como esta se apropriou de processos curriculares como meio para ocupar, trazer, reivindicar, mostrar aqueles(as) que passaram por processos históricos de invisibilização, silenciamentos e discriminações. Patrícia Santana transcorre sobre a importância dos estudos biográficos de professores(as) negros(as) dizendo que “nessa linha de abordagem, considero que cada percurso dos professores negros representa uma forma singular de ver as relações raciais que é marcada, justamente, por suas vivências e pelos significados que eles atribuíram e atribuem a elas” (Professores Negros: trajetórias e travessias). Maria José foi professora do Instituto de Educação Física e Desportos da UERJ desde sua criação, em 1970, até 2008, ano em que faleceu. E com as fotografias que eu encontrava dela a fiz de ‘personagem’ principal de minha pesquisa, buscando entender quais foram os processos que circularam para a permanência desta professora negra nesta instituição e quais as táticas (Michel de Certeau) de que lançou mão para transpor barreiras impostas pelo racismo. Zezé, logo nos primeiros olhares lançados sobre as fotografias, foi uma figura que se destacava, algumas vezes por ser a única negra perto do reitor ou em cerimônias formais. Outras vezes, por estar nas fotografias com cantores populares de sua época, personagens ligados ao mundo do samba, ou por se apresentar junto a delegações africanas que visitavam a UERJ. Saber quem era essa mulher me levou a conversar com os integrantes do grupo de pesquisa do qual faço parte, que a reconheceram como uma figura muito conhecida da época e que circulava em diversos setores da UERJ. Umas das pessoas que muito contribuiu para que a história fosse sendo ‘montada’ foi sua filha, Lúcia Maria, que hoje é professora deste mesmo instituto e coordenadora do Laboratório de Programa de Culturas Populares e Folclore, idealizado e organizado por sua mãe. Nosso encontro foi neste local e nele vi materializados alguns objetos que havia visto nas fotografias. Esse encontro foi como uma colcha de retalhos, pois a cada pedaço, cada retalho meu ia cosendo a um retalho dela. As impressões sobre as fotografias, os sentimentos despertados diante da história dessa mulher iam se juntando às falas de sua filha. Percebi através dos relatos de Lúcia que através das disciplinas ministradas por Maria José e das atividades deste laboratório, aqueles(as) que estavam no entorno da universidade, nas favelas, e que nela não poderiam estar como alunos, naquela época, conseguiam nela penetrar e se mostrar como produtores de cultura. As ações de Zezé estiveram nos primórdios da política de cotas raciais que hoje existe na UERJ e em outras universidades brasileiras, sem dúvida.
Isabel Machado
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