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Sobre a Pedagogia

A boa estrela de Nuno Crato como ministro construiu-se em torno de duas ideias-chave: a do desprezo pela Pedagogia e a de que seria o Ministério da Educação e Ciência o principal responsável pela perda da autoridade dos professores. Os resultados estão à vista e é sobre eles que teremos de pensar para tomarmos consciência do paradoxo em que nos atolamos como docentes: gente do século XX a ensinar gente do século XXI com métodos do século XIX.

A realidade fala por si. Segundo o jornal Público, entre junho/2011 e junho/2012 há mais 151 por cento de professores no desemprego. Os cortes suicidários na dotação orçamental das universidades públicas portuguesas, a destruição/privatização do subsistema de educação e formação de adultos, a denominada reestruturação curricular do Ensino Básico e a constituição dos mega-agrupamentos irão contribuir para que o número de docentes que procuram os centros de emprego vá aumentando.
Há um drama social à solta que o Governo de Passos Coelho e de Paulo Portas tem vindo a alimentar, em nome de um compromisso com agências financeiras internacionais que tem servido de alibi para legitimar uma política de reformas estruturais que a curto/médio prazo visa destruir o que ainda resta dos direitos sociais dos trabalhadores portugueses e, a longo prazo, contribui para restabelecer a ordem meritocrática que os discursos e as ações inspiradas nos ideais de vida de uma sociedade e de um mundo mais democráticos, apesar de tudo, foram abalando.
No campo da educação escolar esta é uma tendência que está em marcha há bastante tempo, beneficiando de um conjunto de representações que a força de uma escola e de uma sociedade elitistas foram consolidando à pala de uma ditadura e do subdesenvolvimento do país.
Em larga medida, a luta que, a seguir ao 25 de Abril, se travou por uma instituição escolar mais congruente com os valores e os princípios de uma sociedade democrática explica-se pela tensão entre tais valores e princípios e a abordagem educativa meritocrática que sempre constituiu, de forma mais agressiva ou mais subentendida, um obstáculo à democratização da Escola portuguesa.
É essa tensão que, por exemplo, está presente na crítica que se fez, e faz, à unificação dos níveis de escolaridade pós-ensino primário, chegando-se até a atribuir a tal unificação a responsabilidade pela decadência da escola pública portuguesa. Uma crítica tão popular quanto pouco fundamentada, na medida em que o ensino técnico e comercial não deixava de ser uma opção que, em 1974, só era acessível a uma minoria da população portuguesa – é que 71 por cento das crianças que frequentavam a escola nessa data não iam além da antiga 4ª classe.
Seja como for, e apesar das hesitações, dos equívocos, das contradições, das medidas falhadas e de todas as contramedidas tomadas, o que se constata, mesmo assim, é que em 1974 havia 43.653 alunos no Ensino Secundário, enquanto em 2010 esse número aumentou para 483.982. Se olharmos para os números do Ensino Superior, verifica-se que aos 81.582 alunos em 1974 se contrapõem 383.627 em 2010.
Ainda que estas marcas só permitam demonstrar que em Portugal vivemos, desde o advento da democracia, um processo de massificação da escola nos níveis de escolaridade posteriores ao atual 1o Ciclo do Ensino Básico, importa não desvalorizar este facto como parte de um percurso que implica que outros desafios têm de ser equacionados, nomeadamente aqueles que se prendem com a qualidade do sucesso escolar dos alunos. Sucesso que implica o alargamento e diversificação das suas experiências culturais, em função das quais se torne possível estimular quer o desenvolvimento subsequente das suas competências literácitas ao nível da utilização da língua falada e escrita, da Matemática ou das ciências naturais e exatas, quer o desenvolvimento das suas competências estéticas, quer, ainda, o desenvolvimento do sentido cosmopolita de pertença a um tempo e a um espaço que, por isso, terão de ser compreendidos em função da sua articulação com outros tempos e outros espaços.
Será, pois, a partir deste conjunto de objetivos que se explica a possibilidade de nas escolas se contribuir para o desenvolvimento das competências cognitivas e interpessoais dos alunos.
É verdade que, nas escolas portuguesas, o conjunto de experiências formativas nem sempre tem vindo a favorecer o desenvolvimento das vivências e competências referidas, até porque não é fácil, não é consensual e exige uma rutura com conceções e representações acerca do mundo, de si próprio, dos outros e do ato de educar que não só não é fácil de estabelecer, como não é objeto de qualquer estímulo suficientemente significativo que concorra para que uma tal rutura possa acontecer.
Nos tempos que correm, o problema agrava-se porque a política educativa do Governo é contrária a qualquer projeto que vise transformar as escolas em espaços culturalmente mais significativos, socialmente mais justos e politicamente mais democráticos.
Impede-o quando pretende aumentar o número de alunos por turma. Impede-o quando impõe uma reestruturação curricular que empobrece a escola como espaço de socialização cultural.
Impede-o quando sustenta através de medidas esotéricas um programa tão assistencialista quanto inconsequente de recuperação de alunos que manifestem dificuldades de aprendizagem.
Impede-o quando em nome do rigor e da exigência contribui para o desenvolvimento de práticas instrumentais de ensino cuja preocupação com os resultados dos exames contribuirá para que o desprezo pela inteligência e a singularidade dos alunos se constitua como um fator de aprofundamento do mal-estar que grassa pelas nossas escolas.
Se a possibilidade de criar as condições para que os alunos realizem aprendizagens significativas já não é, por si só, uma tarefa fácil, a partir do momento em que os exames se tornam o principal referente do trabalho dos professores tornar-se-á uma tarefa indesejável.
O problema é que a boa estrela de Nuno Crato como ministro se construiu em torno de duas ideias-chave: a do desprezo pela Pedagogia e a de que seria o Ministério da Educação e Ciência o principal responsável pela perda da autoridade dos professores. Os resultados estão à vista e é sobre eles que teremos de pensar para tomarmos consciência do paradoxo em que nos atolamos como docentes, gente do século XX a ensinar gente do século XXI com métodos do século XIX.
Se o consulado de Nuno Crato servir para compreendermos que é a Pedagogia que constitui a área de referência da profissão que abraçamos, aquela que justifica quer a nossa singularidade e prestígio laborais, quer a reivindicação do salário digno que temos que auferir, pensamos que um dia teremos de agradecer a sua permanência, que apesar disso desejamos o mais curta possível, no Ministério da Educação e Ciência. É que tem sido em nome do desprezo pela Pedagogia – um desprezo tantas vezes partilhado por docentes que hoje são vítimas desse mesmo desprezo – que se explica uma parte significativa da política educativa deste Governo, a qual parece querer, habilmente, matar três coelhos com uma cajadada só: afirmar a subalternidade da Pedagogia como área de referência do trabalho docente, tomar medidas em conformidade com tal subalternidade e promover o desinvestimento estatal no desenvolvimento e afirmação da Escola Pública.
Quanto ao papel redentor do Ministério da Educação e Ciência, este e qualquer outro, no que diz respeito à autoridade perdida dos professores, ainda é cedo para abordar o tema. É que a procissão ainda vai no adro.

Ariana Cosme e Rui Trindade


  
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