A propósito do Campeonato Europeu de Futebol (junho)
O que é hoje o desporto?
O desporto de alta competição, como o futebol, é um dos aspetos da estratégia imperial do neoliberalismo. Também nele, é evidente uma ideologia e um modelo de sociedade. A propósito, poderíamos escutar o sociólogo brasileiro, Emir Sader, em «A vingança da História»: “A exportação desse modelo de sociedade encontrou no mais poderoso aparelho de propaganda jamais existente na História (a combinação entre meios de comunicação e indústria do divertimento) o instrumento da sua universalização. Eles compõem um impressionante aparato económico, informativo e de divertimento, que chega a quase o mundo inteiro, generalizando estilos musicais, cinematográficos, de moda, informativos, próximo de uma formidável homogeneização que acompanha e dá alma à globalização neoliberal”. O desporto de alta competição também integra o “aparelho de propaganda” da sociedade de mercado. Trata-se, portanto, de um desporto de elites, dominado pelo mercado e pela publicidade, onde o desporto escolar e o lazer desportivo pouco mais representam do que pobres aleijões, mascarados de fatores higiénicos e educativos. Só há desporto de massas, na sociedade de mercado, se dele resultar alienação e lucro. Aliás, o mesmo poderíamos dizer do desporto de alta competição, citando o caso dos nossos clubes de futebol, com exceção dos três “grandes” e do Braga, Marítimo e Nacional – estes, por razões de afirmação regional. A crise do desporto escolar e do lazer desportivo é do mesmo teor da crise que atravessa as regalias sociais dos trabalhadores. Chegámos ao apogeu do capitalismo e, perante o espanto de muita gente, verifica-se uma desproteção crescente dos mais necessitados, o predomínio do niilismo e da ganância e a ostentação de uma vida luxuosa e viciosa. Que o mesmo é dizer: o desporto continuará um fator de pura alienação, de que os governantes falam por mero populismo ou por exigências da conjuntura. Um desporto que se apresente como democracia participativa, ou como cultura de solidariedade, acontecerá, um dia, com um neo-socialismo, onde, de facto, seja verdade uma democracia participativa e não a estatolatria que nos submerge, ao serviço do grande capital. O que é hoje o desporto? É, acima do mais, um espetáculo de alienação popular, publicitado, durante 24 horas, por todos os meios da Comunicação Social. Visando a saúde e a educação, ou até as necessidades básicas de movimento? Na sociedade de mercado, não se reproduzem os valores da vida, mas o capital. O desporto, com todas as suas imensas virtualidades éticas e políticas, pode ser um fator de cultura comunitária, de democracia radical e global. Pode... Mas ainda não é! Para que o seja, é preciso que o mundo associativo se afaste do capitalismo mundializado e faça de cada praticante desportivo um sujeito participante na construção de um mundo novo. A maior das falácias que muitos políticos arrogantemente apregoam é a de que se torna impraticável transformar, ou erradicar, este capitalismo que nos consome e que produz, simultaneamente, riqueza e miséria. Através do desporto, poderemos concorrer ao surgimento de uma sociedade diferente, onde a relação entre as pessoas seja de sujeito-sujeito e não de sujeito-objeto. Através do desporto, é possível renascer a esperança... Mas com outra política e outros políticos! Perguntar-me-ão: mas o que tem isto a ver com o Euro’2012? Se me permitem, muito!
Manuel Sérgio
Desporto vs educação física
A partir dos anos 60 do século passado, envoltas num progressismo bacoco, começaram a chegar a Portugal as estuporadas filosofias de Jean-Marie Brhom e dos seus compagnons de route, dignos representantes da então chamada “nova esquerda”, que deu cabo da cabeça a muitos professores, da vida a muitos mais estudantes e atrasou de sobremaneira o desenvolvimento do desporto no país. Para estes prosélitos da educação física, por incrível que hoje possa parecer, a competição era tida como uma palavra maldita, alienante, uma espécie de demónio que subjugava o espírito e corroía o corpo de um qualquer cristão tomado pelo pecado do gosto de praticar desporto. Em conformidade, era necessário expurgá-la de todo e qualquer programa escolar, fosse ele do ensino primário, secundário ou universitário. No extremo, à semelhança daquilo que se passava na República Popular da China, as competições desportivas deviam ser organizadas sem resultados, na medida em que estes eram um produto degradante da sociedade capitalista. Esta aversão pela competição, que tomou conta das escolas universitárias de educação física e desporto por esse mundo fora, levou ao afastamento dos novos licenciados do mundo do associativismo desportivo e abriu, em simultâneo, as portas do desporto a um dirigismo pouco culto e mal preparado, sem princípios, valores e prospetiva, que o conduziu por caminhos nem sempre recomendáveis. E, conquistado o poder desportivo, trataram de se instalar. Alguns ficaram lá agarrados mais de 30 anos. Outros, ainda lá estão. Em conformidade, em Portugal, foi necessário publicar o Decreto-Lei nº 248-B/2008, de 31 de dezembro, determinando (artigo 5º) que “ninguém pode exercer mais do que três mandatos seguidos num mesmo órgão de uma federação desportiva”... Quer dizer, a fim de salvaguardar a democraticidade da vida das federações, por ausência de cultura democrática no mundo do associativismo desportivo, teve de funcionar a imposição coerciva da Lei. Mas quando e onde começou esta guerra da educação física contra o desporto? Desde finais do século XIX que Pierre de Coubertin compreendeu que estava no meio de uma disputa entre os apaniguados da educação física e os do desporto. Na realidade, ao tempo, era impossível conciliar os interesses de uma educação física erudita, mecanicista, paternalista e classicista, que queria educar o povo a fim de melhorar a saúde e a raça, e um desporto popular que, por via da recreação competitiva, desejava a excelência que permitia às massas evoluírem do ponto de vista social através do profissionalismo. Em Portugal, entre outras, uma das provas mais significativas de que a conciliação era impossível foi o que aconteceu no Primeiro Congresso de Educação Física, organizado pelo Ginásio Clube Português em 1916, onde, em nome da educação física, por via dos médicos, dos militares e dos professores de ginástica, aconteceu um dos ataques mais cerrados de que há memória ao mundo do desporto. A décima primeira conclusão do Congresso diz: “Que sendo a ginástica uma escola educadora da vontade e formadora da coragem sem o propósito exclusivo de criar a força ‘bruta’, haja todo o cuidado na especialização do que vulgarmente se chama ginástica atlética, atletismo de força e desportos combativos. A cultura física devendo ser consecutiva a uma cuidada, rigorosa e apropriada educação física tem de ser orientada pelos ensinamentos de igiéne e da fisiologia humana, procurando-se sempre a harmonia das formas para a constituição do tipo normal, deve fazer-se rigorosa seleção para permitir a cultura física, apenas aqueles que já educaram o corpo segundo prescrições da sciencia e arte de criar o homem”. Esta luta da educação física contra o desporto já vinha de 1888, quando, em França, se digladiavam três homens, cujo conflito havia de determinar o desenvolvimento futuro, não só da própria educação física como do desporto moderno. Eram eles Jean-François Paschal Grousset (1844-1909), Philipe Tissié (1852-1935) e Pierre de Coubertin (1863-1937). Em grande medida, pelas diferentes perspetivas ideológicas de cada um deles, mas também devido aos interesses pessoais que conflituavam entre si, estes homens deram início a uma guerra surda que se haveria de prolongar por todo o século XX – e até entrar no século XXI, porque ainda hoje está por resolver. De facto, se quisermos apurar o momento e o local em que se desencadeou a “guerra” entre a educação física e o desporto foi, certamente, naquele ano, em França e com aquelas três figuras, que, sobre a competição, tinham posições radicalmente diferentes. Em conformidade, cada um deles criou a sua própria organização: Paschal Grousset, um homem da Comuna de Paris, fundou a Ligue Nationale de l’Éducation Physique, em outubro, a fim de promover os seus ideais políticos; Philipe Tissié, médico, fundou, em outubro do mesmo ano, a Ligue Girondine d’Éducation Physique, a fim de promover os seus ideais regionalistas. A fundação dessas organizações aconteceu em reação a Pierre de Coubertin que, alinhado com Henri Didon (1840-1900) e Jules Simon (1814-896), havia fundado, em junho do mesmo ano, o Comité pour la Propagation des Exercises Physiques, a fim de, partindo das ideias de Thomas Arnold (1795-1842), desenvolver os seus ideais desportivos. Posteriormente (1894), Coubertin viria a fundar o Comité Internacional dos Jogos Olímpicos – a partir de então, o desporto começou uma marcha triunfante, enquanto que a educação física minguou até ser tão somente uma disciplina escolar que, se abdicar do ensino e da prática desportiva, fica reduzida a nada.
Gustavo Pires
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