É consabido que o mundo juvenil que habita a Escola tem sofrido profundas transformações nas últimas décadas, especialmente entre nós, a maior das quais corresponderá, porventura, à sua “alunização”, termo de que nos vamos ocupar com algum pormenor.
O termo “alunização” ocorre-nos comportando dois sentidos. O primeiro, para designar uma certa universalização da Escola enquanto modo específico de formação, acompanhada de um claro prolongamento de estudos, o que, no caso português, acontece num ciclo de tempo extremamente curto (pouco mais de 15 anos) no seguimento da escolaridade obrigatória de 9 anos, actualmente já a expandir-se para doze. A este estado de alunização anda naturalmente associado um modo de vida caracterizado por uma actividade improdutiva do ponto de vista material, uma consequente dependência familiar prolongada e um modo de gestão do tempo e do espaço muito sujeito a riscos e vulnerabilidades de toda a ordem, situação especialmente evidente no caso dos estratos socioeconómicos culturalmente debilitados. E aqui defrontamo-nos com um segundo sentido do termo “alunização”, que agora já não quer dizer, apenas, o alargamento temporário da condição de aluno envolvendo a vida dos jovens, mas a sujeição a uma cultura específica e a um estilo de vida derivados da instituição escolar, que implica a obediência a valores e práticas disciplinares de que a grande maioria da população portuguesa esteve afastada no alvorecer da adolescência ao longo de gerações sucessivas. Só a partir de 1994 se tornou universal a escolaridade obrigatória de 9 anos. Isso significa que, segundo dados do investigador Eugénio Rosa, reportados a 2005, perto de 65% da população portuguesa entre os 35-45 anos não terá mais que o 6º ano de escolaridade, resultando daí que a condição de aluno dessas famílias não chegou a ser interiorizada, pelo que os seus filhos acedem à Escola com um “défice de alunização” que o tempo individual de frequência não chega para resolver; pelo contrário, contribuirá, até, para o agravar, na medida em que a socialização horizontal intensiva que, normalmente, corresponde à experiência escolar naquela faixa etária conduz o processo de alunização à sua negação e, muitas vezes, ao desastre escolar e até pessoal. Segundo uma investigação realizada recentemente no interior da população do Ensino Secundário, com vista à compreensão das representações dos alunos quanto ao significado do seu trabalho, foi possível reconhecer que apenas uns 20% se identificam claramente com o estatuto de aluno, exemplarmente assumido neste depoimento constante de uma entrevista do estudo realizado: “Quando não gosto (de alguma disciplina) tento trabalhar mais do que quando gosto; porque quando gosto, quando percebo, não preciso ou, mesmo, estudo um bocado menos porque já percebo; então, estudo mais (do que não gosto) para tentar manter as notas como se gostasse”. Como é evidente neste passo, o culto da disciplina é central na definição do “verdadeiro aluno”: aí está consagrada a obediência ao que é imposto no currículo escolar, mesmo que isso signifique o sacrifício do que é mais autenticamente pessoal. Essa aprendizagem não é fácil, bem pelo contrário: supondo um trabalho de gerações, implica que os “verdadeiros alunos” requerem, por norma, uma prévia “alunização familiar”, ao invés do que o senso comum admite quando representa a dedicação ao estudo como uma “decisão” pessoal. Esta será, porventura, uma marca mais observável nos designados “novos alunos” oriundos de famílias precariamente escolarizadas, que representam a grande maioria da actual população escolar. Entre estes, porém, temos que distinguir aqueles que, pelos resultados alcançados, conseguem ser reconhecidos pela instituição escolar e nela se reconhecem – e que, por esse facto, denominámos de “assimilados” – e aqueles que não conseguem deixar-se assimilar pela instituição, mesmo que isso signifique sofrimento, exclusão e abandono, ou o seu reverso, rebeldia e desviância. A naturalização destas diferenças, ou seja, a tendência para considerar os diferentes comportamentos escolares como a expressão da elementar condição de aluno, como se esta condição fosse um atributo genético apenas dependente da simples frequência escolar, finalmente acessível a todos, tem vindo a ganhar espaço social e político crescente à medida que as teorias meritocráticas significam a desresponsabilização social e política dos últimos decénios e a consequente responsabilização individual, adoptadas pelos sistemas educativos um pouco por todo o mundo. Compreende-se como esta tendência favorece a aplicação de medidas políticas liberalizantes em nome de uma concepção de justiça que se limita a proclamar princípios universais, sem cuidar das circunstâncias concretas da sua realização. Aqui, parece irrecusável a evocação do cínico voto de Constant: “que a autoridade do Estado se limite a ser justa, que nós nos encarregamos de ser felizes!”
Manuel Matos
|