Página  >  Opinião  >  O fascínio pela “realidade mediada”

O fascínio pela “realidade mediada”

Afirmar que algo é real, hiper-real, surreal, virtual, irreal é hoje foco de acirradas controvérsias. As fronteiras entre ficção e realidade estão esmaecidas, tornando-se cada vez mais difícil garantir à linguagem um referente inequívoco. A linguagem constrói a realidade, argumentam os teóricos da virada lingüística. Os discursos inventam as verdades, nos alertou Michel Foucault. Debates filosóficos à parte, alguns analistas culturais da atualidade têm trazido à discussão o fato de nossas experiências mais significativas hoje estarem sendo crescentemente mediadas pelas tecnologias. Quer dizer, recolhemos nosso “senso do mundo”, nosso sentido de realidade, mediante instrumentos óticos e veículos de informação que constroem para nós um universo bem mais “completo” do que as “antigas” e supostamente “indiscutíveis” experiências “reais”, “ao vivo”, podiam oferecer.

Há mais de cinqüenta anos, boa parte do público que vai a jogos em estádios de futebol, por exemplo, recorre a rádios portáteis para incrementar sua “visão” do espetáculo esportivo. Mais recentemente, novos aparatos de transmissão de áudio e vídeo foram incorporados com finalidade similar. Além de aprimorarem a participação no espetáculo, eles fornecem outros e privilegiados ângulos dos acontecimentos.

Mas essa é apenas uma das leituras possíveis desse fenômeno contemporâneo – o fascínio pela “realidade mediada” − ao qual me refiro utilizando uma expressão quase coloquial, embora diga respeito a algo bastante complexo.

Prossigamos, então, refletindo agora sobre “a vida real” transformada em ensaio para aquela que se deseja fruir e perpetuar. Cada vez mais, comemorações de todo o tipo estão sendo convertidas em “ensaios” para a “versão mediada” que, esta sim, deseja-se esteticamente perfeita, sem retoques, a ser desfrutada em algum momento futuro, prazerosa e intensamente, como acontece quando nos instalamos em uma sala de cinema, em um teatro ou diante da tela da TV. Beijos de noivos são retardados, teatralizados, repetidos várias vezes diante de altares caprichosamente enfeitados para casamentos-show. Alianças são trocadas, colocadas e retiradas repetidamente, em busca do melhor ângulo para compor a versão perfeita do enlace: aquela que se assistirá depois, nos computadores, tablets, smartphones e, ainda persistentes, aparelhos de TV. Não é diferente nas cerimônias de formatura, em que a conquista de grau acadêmico transmuta-se em melodramas rememorativos e celebrações performáticas de amizades, afetos, encontros. Tudo para ser capturado em movimento e assistido, depois, quem sabe uma única vez. Real? Irreal? Hiper-real? Fruição? Exibicionismo? Egocentrismos?

Fazer-se imagem, visibilizar-se, espetacularizar a vida – são enunciados que podem ser extraídos de tais acontecimentos. O sucesso do Facebook talvez seja uma das melhores expressões dessa tendência contemporânea para a visibilização de si e perscrutação dos outros, tornada possível graças à tecnologia e ao fascínio pela “realidade mediada”.

O incontável número de mães e pais cuja primeira visão de seus filhos ocorre através de aparelhos de ultra-sonografia, e o crescente contingente de bebês que vêm ao mundo sob a mira de câmeras de vídeo nas salas de parto são mais indícios desses novos tempos. O Youtube surge como espaço de celebração global desse movimento de visibilização sem fronteiras, sem limites, em constante diversificação e expansão.

A visão pura como suposta forma privilegiada de percepção direta do mundo está em irrecuperável declínio diante da riqueza de versões tornadas possíveis com a multiplicação dos pontos de vista. Por sua vez, as descrições, comentários, destaques e críticas dos narradores tornam “visível” aquilo que apenas os olhos dos próprios expectadores não conseguem ver. Há uma expertise do olhar a que já não se pode renunciar, a serviço de audiências sequiosas por informações e fascinadas por voyeurismo. As novas tecnologias tornaram o mundo transparente, como nos alertou Gianni Vattimo (1991), e já não nos conformamos em prescindir do acesso ao máximo possível de versões que a mediação da experiência contemporânea propicia. Já não são apenas os lances do espetáculo oferecido pelo futebol arte ou técnica que nos atraem nos estádios, queremos o show da vida atravessando-nos completamente – de preferência, aliando competição, talento, suor, sucesso, violência, dor, riso, intriga e lágrimas. Surpreendentemente, é a “realidade mediada” que está a nos proporcionar tudo isso de formas cada vez mais sofisticadas.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Trad. de Carlos Aboim de Brito. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1991. 

MARISA VORRABER COSTA
Professora dos cursos de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Luterana do Brasil. Pesquisadora do NECCSO/Brasil.

Fotografia: Joana Rodrigues


  
Ficha do Artigo

 
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo