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São muitas as incógnitas, mas eu acredito na ciência

O I3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, composto pelo Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB), Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) e Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), constituiu-se associação no início do ano, altura em que Cláudio Sunkel assumiu funções como diretor. Quando se preparava para uma liderança cheia de projetos e vontades, chega a Portugal a pandemia do novo coronavírus, um desafio a que o I3S não virou costas. Nascido no Chile, mas há mais de 30 anos em Portugal, Cláudio Sunkel recebeu a PÁGINA no grande edifício do I3S, situado no Pólo Universitário da Asprela, no Porto. Nesse encontro, no início de julho, o também docente do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) falou da doença do momento, da Ciência e Investigação em Portugal, de ensino a distância e de projetos para o futuro do I3S.

Assumiu a direção do I3S no início do ano e, pouco tempo depois, a pandemia chega a Portugal. Foi um arranque de registo...
Foi. É muito interessante, já é a segunda vez... Em 2009 passei a ser diretor do IBMC, que é um dos institutos fundadores do I3S, em 2010 estava tudo a correr bem e 2011 foi ano de crise. Portanto, já tenho treino [risos]. Assumi a direção do I3S, que, como instituição privada sem fins lucrativos, foi criado a 20 de dezembro. Foi um trabalho muito intenso para chegar a esse ponto, sobretudo durante 2019. Começámos em janeiro de 2020, cheios de vontade, de ideias e de iniciativas, e dois meses e meio depois tivemos de parar. E não houve alternativa. Por um lado, porque tivemos um caso, houve duas ou três pessoas infetadas num grupo de investigação; por outro, o Governo estava prestes a decretar o estado de emergência. E o que nós avaliámos foi que era melhor fechar e depois veríamos como lidar com a situação.

O I3S participa ativamente neste combate, associando-se aos hospitais e passando, também, a fazer testes de diagnóstico à covid-19. Quais foram os principais desafios neste processo?
Nós fechámos no dia 16 de março e tenho de confessar que fiquei uma semana em casa, muito irrequieto, a pensar: ‘isto não pode ser, a instituição tem condições para contribuir de alguma forma’. Na segunda-feira seguinte [23 de março], tivemos uma reunião com o Professor Tiago Guimarães, diretor da área de diagnóstico do Hospital de São João. E, de facto, ele lançou-nos o desafio de colaborar de alguma forma nos diagnósticos moleculares de covid. A princípio parecia ser uma coisa impossível de fazer, e que iria ser muito difícil de montar, mas praticamente numa semana identificámos o local, os laboratórios, montámos uma equipa de seis/sete pessoas, pedimos voluntários de entre os estudantes de doutoramento e investigadores do I3S e, uma semana depois, antes do fim de março, entramos em contacto com o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que nos forneceu todas as indicações do que tínhamos de fazer. E penso que a partir de 1 de abril já estávamos a fazer 350 testes por dia. Apanhámos o Porto na fase mais complicada da pandemia, com 250/300 casos por dia. Foi uma fase muito interessante – no sentido da complexidade do próprio teste, que não é fácil – e nós começámos por ter, diria, 50% positivos. Portanto, era muito importante. Fizemos acordos com a Administração Regional de Saúde do Norte (ARS Norte), com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e com a Cruz Vermelha Portuguesa. Abril foi muito intenso, em termos de trabalho, contactos, execução, embora o instituto estivesse vazio e parado, exceto para testes de covid.

Na sua opinião, o país agiu no momento certo?
Acho que tudo correu muito bem até o processo de confinamento ter o seu impacto na Área Metropolitana de Lisboa. Porque a Área Metropolitana do Porto não o teve. Ou seja, vemos agora os números muito recentes [início de julho], das últimas semanas, e praticamente não há casos novos na zona do Porto, o que quer dizer que a dimensão da cidade teve efeito. Uma coisa de realçar é que a resposta à pandemia, sobretudo na área do Porto, em termos de testes está muito centralizada. A ARS Norte centralizou completamente e isso facilitou muito o trabalho, porque foi possível perceber que havia uma coordenação muito grande. Lisboa é muito mais complexo; há muitos atores no processo e muita gente envolvida e pode ter havido alguma descoordenação, mas penso que Lisboa está a viver o que o Porto viveu primeiro, no início. As infeções começaram no Norte, a primeira foi detetada no dia 8/9 de março... Mas, então, já tínhamos tido aquelas duas semanas em que todo o mundo andava a mexer-se e, portanto, veio um fluxo grande. Lisboa apanhou aquilo numa fase posterior e está a viver aquilo que nós vivemos no início de março.

Parece que se movimenta...
É uma onda. É um processo de contaminação pessoal e, portanto, à medida que as pessoas se vão encontrando umas com as outras, o vírus vai progredindo.

Como vê o processo de desconfinamento? De forma confiante ou apreensiva?
O I3S tem, no seu normal funcionamento, à volta de mil pessoas a trabalhar neste prédio. Portanto, tínhamos muito receio do processo de desconfinamento. E o que fomos fazendo, a partir de 2 de maio, foi começar muito devagarinho. Depois fizemos uma revisão em meados de maio, outra em princípio de junho e outra agora, em meados de junho, e, neste momento [início de julho], temos à volta de 75% das pessoas a funcionar. E achamos que vamos manter isso. Ou seja, não é um desconfinamento total – as pessoas que podem manter-se em teletrabalho estão a fazê-lo, há turnos de trabalho, portanto, há toda uma organização que se montou. Portugal está a ter entre 300 e 400 casos por dia, não sobe nem desce, mantém-se assim e pode ser que venham a ser interrompidas algumas cadeias de transmissão e que venha a descer. Ou pode ser que se mantenha durante um tempo maior. Há muito receio por parte da ARS de uma segunda vaga, mas penso que, se as pessoas mantiverem o distanciamento social, a utilização de máscaras, o cuidado no seu dia a dia, a higienização das mãos, e por aí fora, pode manter-se um nível de transmissão deste tipo, que é um nível de transmissão controlado. E que pouco a pouco a população vá ganhando o que se discutia muito no início – a imunidade de grupo. Tenho acompanhado muito o processo, sobretudo das vacinas, e pelo que se tem visto, estou muito confiante de que antes do fim do ano vamos ter vacina. Há, pelo menos, três grandes empresas que já estão em ‘fase três’. Uma delas já com 100 mil pessoas a testar. E, ao mesmo tempo que estão a fazer os testes, estão a fazer a produção da vacina. Portanto, antes do fim do ano pode haver, talvez, um bilião de doses de vacinas prontas para entrega.

Mas uma vacina não é algo que requer tempo? Temos toda a comunidade centrada nisto e, por isso, a descoberta pode ser muito rápida, mas, depois, os efeitos e a eficácia da vacina...
O que se percebe agora é que uma destas vacinas é uma tecnologia nova; uma outra é uma tecnologia mais antiga, que é um componente do vírus; e a outra é uma vacina baseada no vírus da gripe sazonal. O que já se sabe das três é que, quando as pessoas são injetadas, elas produzem anticorpos que parecem ser neutralizadores, protetores. Mas há imensas incógnitas... Quanto tempo dura a proteção? Irá ser necessária uma segunda dose? Será que vai haver algum efeito secundário? Por exemplo, uma em 100 mil pessoas ter um efeito muito negativo... Não sabemos. Isso vai ter de se provar no campo e, para isso, vai ter de se fazer imunização em grande escala. Portanto, o que antes iria demorar um ou dois anos a fazer, agora está a demorar seis meses. E eu estou bastante convencido de que, antes do fim do ano, vai haver mais do que uma vacina a ser implementada em grande escala, até como ensaio de ‘fase três’, mas em muito grande escala. A Rússia, a China... Há mais de 100 ensaios a funcionar; o sistema científico mundial virou-se completamente para a pandemia. Neste momento, a única droga antiviral é a Remdesivir, mas é utilizada em casos muito agudos de pessoas que estão em cuidados intensivos – parece que reduz o tempo de hospitalização, ajuda... Mas para atingir a imunidade de grupo com 250/300 casos por dia, demoraríamos 20 anos. Portanto, vamos ter de confiar que essas vacinas tenham muito poucos efeitos secundários – isso já mostraram, já fizeram ‘fase um’ e ‘fase dois’ – e que em ‘fase três’ de larga escala sejam capazes de ter eficácia. Se não, a vida vai continuar a ter estas características de algum grau de distanciamento e tudo fica muito reduzido. E se nós queremos ter uma vida normal – que eu acredito que durante o próximo ano vá começar a acontecer –, é só através da vacinação. Pode ser que a vacina seja muito efetiva durante um ano, que tenha de ser modificada e feita no segundo ano... São muitas as incógnitas, difíceis de responder neste momento, mas eu acredito na Ciência.

Para os profissionais de Saúde, esta pandemia é um problema. Mas deve ser muito estimulante... Para a Ciência, deve estar a ser uma fase bastante interessante.
Confesso que não vejo assim, como coisa hiper estimulante, com imensos projetos... Não. Diria que teria sido muito mais interessante – e vou ser um bocadinho politicamente direto – que a China, em fins de novembro, quando a situação se desenvolveu, tivesse tomado uma atitude um bocadinho mais responsável, tivesse comunicado e confinado mais rápido, porque era uma gripe atípica – esta é a terceira e as três têm-se caracterizado por terem um efeito, em termos de letalidade, até dez vezes superior a uma gripe normal. Portanto, não a vejo como coisa fantástica para a Ciência descobrir, porque, afinal, SARS1, SARS2 e MERS são praticamente iguais. Não nos ensinam grande coisa. A única coisa que nos informam é que os vírus conseguem evoluir muito rapidamente e tornar-se altamente transmissíveis. E, de alguma forma, letais, se nós deixássemos. Na nossa interação com o meio ambiente, vamos ter isto sempre... Aliás, é muito interessante que a sociedade civil, digamos assim, esteja, finalmente, a olhar para a história do ponto de vista da Ciência; já houve imensas doenças e vai continuar a haver. Nós estamos cada vez mais a invadir o meio ambiente selvagem e estamos a fazer com que os animais, que normalmente viviam no seu meio e praticamente não tinham contacto connosco, passem a ter. E esses animais têm vírus dos quais nós não temos a menor ideia, muitos dos quais poderão ser transmissíveis e sofrer alguma alteração que os permitam infetarem-nos. Portanto, isso acontece normalmente, nos processos de evolução dos vírus. E eu, tenho de confessar, teria dispensado isto...

Basta uma vida perdida para ser uma tragédia. Mas agora há um outro reconhecimento da sociedade, as pessoas passaram a olhar de outra forma para a Ciência, para os profissionais de Saúde, que passam a ser profissões...
Que agora são muito mais valorizadas...

Portanto, nesse sentido, são tempos estimulantes para a Ciência, para a Investigação, para os profissionais de Saúde.
Aliás, o desafio posto pelo ministro Manuel Heitor [Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior] às unidades de investigação, para contribuírem de forma ativa para os testes moleculares de covid-19, foi um desafio que a Academia abraçou. E não só; neste momento, há 19 laboratórios que contribuem com um terço dos testes que se fazem no país. Portanto, teve um impacto muito significativo; mostrou que a comunidade científica é capaz de responder, que tem competências. Depois começou a alastrar para outras coisas: o que está a acontecer com os testes serológicos, o que aconteceu com o tecido das máscaras, com o material de proteção individual, com as zaragatoas, com os ventiladores... Alastrou da Ciência para o empreendedorismo e para as empresas; mostrou que existe conhecimento, capacidade e vontade de fazer, quando é necessário fazer. Criaram-se imensas oportunidades e eu creio que a maior parte não vão desaparecer. Portanto, teve um lado extremadamente positivo, como a necessidade de a comunicação social ir beber à fonte, que são os cientistas.

O que acha que vai mudar a partir daqui? Não é sociólogo, mas pode ter uma visão interessante sobre o assunto.
Depende muito, se de facto houver uma vacina que se mostre eficaz. Mas acho que pouco a pouco vamos retomar muito das nossas atitudes e de comportamento diário. Se essa não for uma realidade muito em breve, o que irá acontecer é que as pessoas vão estabelecer uma certa distância, e essa distância física nota-se, embora as pessoas estejam a ficar um bocado cansadas. Por exemplo, tudo o que é online é muito bom, mas não é igual. Acho que vamos ter de voltar ao contacto direto e esperemos que a Ciência nos ajude a fazê-lo. Se calhar, muitas coisas vão continuar a acontecer online, como pequenas reuniões e coisas triviais, mas... Há um aspeto que acho importante reconsiderar e pensar no futuro, que é a globalização e a mobilidade das pessoas. Chegou-se a um ponto em que, se calhar, o mundo não consegue aguentar. Ou seja, o mundo natural não tem capacidade para aguentar o bilião de pessoas que estava a deslocar-se todas as semanas, por aviões e pelos lugares. Por outro lado, perdeu-se um bocadinho o prazer das coisas. Já não era tanto se as pessoas tinham estado no Vietname ou em Taiwan – era o número e não o prazer; ou seja, ‘já fiz aquilo, o que é que vem a seguir?’... Isso vai mudar um bocadinho; as pessoas vão começar a tentar tirar um prazer maior das pequenas coisas que vão fazer, porque o mundo atingiu um ponto em que começou a ficar saturado. Acho que as pessoas vão reconsiderar o que realmente vale a pena e é necessário.

Ensino Superior português é do melhor que há

Como vê o estado da investigação no país?
Eu vi o país desenvolver-se. Cheguei a Portugal em 1987, na fase em que o Professor Mariano Gago lançou o famoso programa mobilizador de Ciência e Tecnologia. Vejo o financiamento, desde ’87, como um olhar só para a frente: é preciso desenvolver, avançar e criar condições, infraestruturas, formação; portanto, foi sempre a crescer. Tivemos uma pequena queda, quando o Governo de António Guterres foi abaixo, mas logo a seguir recuperámos e continuámos a crescer sempre, em termos não só de dimensão, mas de financiamento... E o crescimento continuou até 2010. A partir daí, estagnou. Não houve crescimento em volume de financiamento, não houve crescimento em número de pessoas... Muita gente saiu durante a troica; milhares de investigadores e alunos de doutoramento saíram e estão agora em várias partes do mundo, a fazer investigação e diferentes tipos de trabalho. Não houve crescimento e o ritmo da nossa produtividade começou a descer. Segundo cálculos que fiz no ano passado, deixámos de crescer em termos de produtividade – o número de publicações em 2019 foi igual a 2018, o que quer dizer que deixámos de crescer. Portanto, tivemos o período da troica, e aí foi uma queda. Depois tivemos o período de 2016 para a frente, que foi uma recuperação, mas não recuperámos até aos números de 2010. Foi uma recuperação, não foi um crescimento. Agora, íamos ter um reinício com grandes expectativas de uma nova fase de investimento e veio a pandemia... Ciência e Cultura sofrem sempre um bocadinho: é fácil cortar na Ciência, porque ninguém se queixa muito, e é fácil cortar na Cultura, porque também ninguém se queixa muito.

E esta é uma fase em que devia haver investimento na Ciência...
Nós não sabemos o que vai acontecer. O orçamento apresentado no ano passado tinha um crescimento bastante significativo na área da Ciência, mas também houve uma redistribuição desse financiamento e penso que foi demasiado redistribuído. Às vezes, é necessário concentrar o investimento em algumas áreas, em algumas entidades, porque são áreas de ponta... Temos perto de 300 unidades de investigação no país e não são todas iguais. Obviamente, pretende-se que sejam todas o melhor possível, mas estão todas a diferentes velocidades. O I3S já atingiu internacionalização, capacidade de procurar fundos internacionais, produção de alunos de doutoramento; é maior do que uma grande faculdade e vamos buscar todo o financiamento a programas competitivos. A Universidade colabora, obviamente; cerca de um quarto dos investigadores que estão cá são docentes universitários, mas o resto (eletricidade, água, segurança...) é financiamento competitivo, que temos de procurar. E o financiamento competitivo é difícil de obter, requer muito empenho, muito trabalho, muita dedicação, muito mérito. Se não tivermos mérito, não temos financiamento.

O certo é que a Ciência e a comunidade científica portuguesas são reconhecidas internacionalmente, não é?
É, muito reconhecida. A internacionalização da Ciência portuguesa tem duas fases. Uma prende-se com a produtividade, os grandes centros de investigação portugueses publicam nas melhores revistas do mundo. É muito interessante quando alunos ou investigadores vão fora fazer um estágio e depois voltam e dizem: ‘ah, afinal não era assim tão diferente do que vocês têm no I3S’. E nós sabemos isso, porque o que queríamos construir não era um instituto de investigação para Portugal, mas um instituto de investigação a nível internacional, que pudesse competir a nível internacional por financiamentos, mas também pelas próprias descobertas. Por outro lado, a mobilidade dos nossos alunos de doutoramento e de mestrado e dos investigadores... Neste momento, nós conseguimos colocar um aluno de doutoramento português, ou que tenha feito doutoramento em Portugal, em qualquer laboratório do mundo, desde o MIT, a Harvard, Stanford, até Karolinska... Em qualquer sítio, porque são muito bem treinados; são melhor treinados cá do que nalguns sítios, porque são mais criativos no sentido de resolver os problemas – impro-visando, desenvolvendo, procurando; encontrando uma maneira de fazer o mesmo, de forma mais eficiente, mais eficaz, que custa menos dinheiro, que seja realmente possível de fazer. Os alunos portugueses são muito bem vistos lá fora. E isso revela que o Ensino Superior português é muito bom. Sempre me fez muita impressão a falta de autoconfiança e de autoestima do povo português. O Ensino Superior português é do melhor que há. Tenho um aluno que fez mestrado connosco e foi para a Dinamarca e está lá a dar cartas. E não só, dizem-nos logo: mandem mais. Nós treinamos as pessoas, no sentido em que damos oportunidade de fazerem coisas diferentes. Muitas vezes, quando vêm alunos de fora, são muito bons numa coisa, mas só numa; quando lhes é pedido para fazerem coisas diferentes, já a coisa se complica.

Portanto, é preciso valorizar o Ensino Superior...
A valorização do Ensino Superior é fundamental, porque é de grande qualidade. E a interação com estas instituições de interface é fundamental, porque depois vêm fazer as suas teses de doutoramento, vêm conhecer o mundo da investigação de facto. Não necessariamente durante os primeiros anos, na licenciatura, embora muitos já batam à porta e perguntem se podem vir. Por outro lado, há uma certa ingenuidade da juventude portuguesa, que acredita que a Ciência vale a pena e tem imensa motivação. E com essa motivação tem imensa dedicação. Não imagina a quantidade de alunos de doutoramento que tivemos, e temos ainda, a trabalhar connosco nos diagnósticos da covid-19. A única coisa que queriam era ajudar a fazer, e a dedicação é total. Querem aprender e contribuir, e acreditam fortemente que é através do treino e do conhecimento, que vão conseguir lograr os objetivos que têm na vida.

 

É FUNDAMENTAL O ENSINO VOLTAR A SER PRESENCIAL

Enquanto docente no ICBAS, experienciou o ensino à distância?
Fiz o meu ensino à distância... Ainda fiz algumas tentativas, mas não consigo olhar para o ecrã e praticamente não ter nenhuma cara, só nomes. ‘Não, isto não é comigo, não consigo fazer isto’. E então fiz uma coisa diferente, escrevi as minhas aulas todas. Tenho 250 páginas escritas durante a pandemia. Fui escrevendo e fazendo uma descrição: já tinha entregue aos alunos a maior parte do trabalho que íamos fazer durante este semestre; então, voltei a esses powerpoints e, slide a slide, fui explicando, descrevendo... Ajudou-me imenso, aprendi imenso Português, aprendi a escrever muito melhor do que escrevia antes. E gostaria imenso de juntar o útil ao agradável e que, em algum momento, esses textos se transformem num livro que possa acompanhar uma disciplina que leciono há alguns anos e de que gosto muito, que são os fundamentos da Biologia Molecular.

O ensino à distância poderia ser uma solução de futuro?
Não. Lamento muito. Este ano tinha 75 alunos. E os alunos gostam muito e eu gosto muito das aulas, porque dou as aulas com eles. Eles participam muito nas aulas, eu faço muitas perguntas e eles fazem muitas perguntas. E eu preciso dessa motivação para ir buscar o discurso sobre as coisas. O ensino é muito mais aquilo de que a gente se lembra do que aquilo que vem nos textos. O ensino tem a ver com o surgir de uma pergunta e essa pergunta levar-nos para um caminho diferente. É muito difícil de prever e, por isso, é necessário as pessoas estarem ali, presencialmente. É fundamental que o ensino volte a ser presencial, pelo menos para mim.

 

I3S QUER TER IMPACTO DIRETO NA SAÚDE DAS PESSOAS

No início do ano, o I3S constituiu-se em associação. Como decorreu o processo? E o que muda?
O I3S foi criado, formalmente, como unidade de investigação financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Foi criado em 2009, quando fizemos a primeira candidatura à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) para a construção deste prédio. Mas essa candidatura era um consórcio de três institutos: INEB, Ipatimup e IBMC. Portanto, três instituições privadas sem fins lucrativos, que decidiram juntar-se já há muito tempo. A história é longa, começa em 2003, quando estas instituições começam a perceber que são complementares, que fazem coisas diferentes, mas que interagindo podem fazer coisas melhores. Inicialmente, foi muito incipiente, mas as colaborações começaram a acontecer pouco a pouco. Em 2009, lança-se o desafio: ‘E se fossemos morar juntos? E qual seria a arquitetura disto, física e institucional?’ Vimos uma oportunidade na CCDR para a construção de novas instalações, e aí começou. Nessa altura, era diretor do IBMC e presidente do consórcio, fizemos uma candidatura e tivemos financiamento. A construção começou em 2011 – o pior ano possível, o mais profundo da crise... Em janeiro, lançámos a primeira pedra desta instituição; começámos a instalarmo-nos em setembro de 2015, ainda na forma de um consórcio, com a Reitoria da Universidade do Porto; a inauguração foi em janeiro de 2016 e passamos três anos a implementar a ocupação do prédio e a pensar na futura instituição.

Entretanto, estava muito trabalho feito...
Muito trabalho de casa... Já tínhamos feito a fusão dos grupos de investigação em três linhas: cancro, doenças neurológicas e neurobiologia, infeção e imunidade e medicina regenerativa. Partimos de 15 linhas diferentes – cada instituição tinha as suas e nenhuma queria abdicar delas – e, após um processo de dois anos, acabamos com três linhas e 65 grupos de investigação. Não foi fácil, mas conseguimos. E conseguimos que a ocupação do prédio não fosse feita por instituições, mas por programas de investigação. Portanto, o que aconteceu foi que um grupo de investigação de uma instituição se juntou com um grupo de investigação de outra e ficou tudo misturado. E esta mistura criou a base, fundamental, do que veio a acontecer até agora, porque criou as raízes de uma nova instituição. Os alunos de doutoramento começaram a partilhar uns com os outros e passaram a ter a identidade I3S; os investigadores contratados pelos diferentes programas passaram também a ver-se como investigadores do I3S... E há dois anos dissemos: ‘a nossa coabitação tem sido boa, está a correr bem’. Na Comissão Diretiva, nunca fizemos uma votação; todas as decisões foram tomadas por consenso. Uma decisão tomada muito cedo, de atingir os objetivos por consenso, porque era a única forma de haver identidade. Também há dois anos, começámos a trabalhar com consultores da Faculdade de Economia, que nos ajudaram imenso num plano estratégico, que terminou, em dezembro de 2019, com os estatutos de uma nova associação – Associação I3S, de que fazem parte a Universidade do Porto, alguns hospitais, algumas outras entidades e algumas empresas e os três institutos. Mas os institutos fazem parte a prazo, até ao momento em que os seus investigadores, os seus projetos e a sua atividade se transfiram para a nova associação: criámos um acordo de parceria entre as três instituições, com a calendarização do que vai acontecer ao longo dos próximos três anos e de como vai ser feita a partilha e a transferência para a nova instituição.

O que já está a acontecer...
Enquanto os institutos vão lentamente reduzindo a sua atividade, o I3S vai aumentando a sua e tomando o controlo. O I3S já está constituído. Com a sua constituição também veio uma nova direção e uma nova arquitetura orgânica. É uma associação privada, sem fins lucrativos, que já tem número de contribuinte, que tem conta bancária, que já começou a receber diretamente financiamentos e que, em princípio, a partir de janeiro de 2021, começa a funcionar em pleno. O processo que temos agora envolve a montagem de toda a arquitetura administrativa e financeira, que não é brincadeira nenhuma; estamos a trabalhar arduamente e o prazo para começar a funcionar é janeiro de 2021. A partir desse momento começa o desafio de convencer as pessoas a transferirem-se dos institutos para o I3S. Portanto, temos de ter uma instituição sustentável, que investigadores e técnicos administrativos vejam como a instituição do futuro. Até agora tem corrido muito bem, temos atingido os objetivos previstos na calendarização.

Recentemente, foram atribuídos 8,5 milhões de euros da União Europeia para financiamento de estudos de imunologia, neurobiologia, bioengenharia molecular, entre outros. Uma boa notícia.
Muito boa. Mas essas candidaturas já tinham sido lançadas antes da criação do I3S.

Foram atribuídas aos institutos, mas vai tudo centrar-se no I3S?
Sim. Quando tivermos a arquitetura de gestão montada, podemos propor às entidades financiadoras a transferência dos títulos de gestão de projetos dos institutos para o I3S. Mas correu muito bem, as candidaturas foram um sucesso.

Enquanto diretor, que projetos e expectativas tem para o futuro?
A curto prazo, o projeto mais importante é a implementação do nosso sistema de administração e gestão. Porque o instituto tem de ter isso pronto até ao fim do ano, para em janeiro de 2021 darmos o pontapé de saída. O projeto a médio prazo é conseguir estabilidade financeira que nos permita olhar para os próximos dez anos com alguma calma e conseguir o reconhecimento como laboratório associado. E depois, a mais longo prazo, que o instituto encontre caminhos – nas três linhas de investigação da instituição – para não só fazer grandes descobertas, mas se possível transformá-las em valor para a sociedade. Ou seja, que o I3S venha a ter impacto direto no tratamento dos doentes e na saúde das pessoas. Há muitas coisas que já estão a ser feitas, mas de forma incipiente; se daqui a cinco anos conseguirmos ter um produto, um tratamento, um diagnóstico, que, de facto, tenha um impacto direto na vida dos doentes e na saúde das pessoas, para mim, isso seria uma realização.

Maria João Leite (entrevista)
Ana Alvim (fotografia)


  
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