Página  >  Entrevistas  >  Solidariedade é uma coisa, direitos sociais são outra

Solidariedade é uma coisa, direitos sociais são outra

A pandemia afetou muitos setores da sociedade, trazendo novas perspetivas, desafios e preocupações. Entre outras coisas, o admirável mundo novo do teletrabalho ou o ensino à distância, por exemplo. Os excluídos ficaram ainda mais excluídos e isso dá muito que pensar. Sérgio Aires está preocupado com o que podemos não ter aprendido com mais esta crise e com o que vamos fazer daqui para a frente. Licenciado em Sociologia pela Universidade do Porto, Sérgio Aires é consultor e perito nas áreas da Pobreza, Exclusão e Políticas Sociais, estando atualmente em Bruxelas como assessor parlamentar do Bloco de Esquerda. Integrou o gabinete de investigação da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal (EAPN-Portugal) entre 1994 e 1998, ano em que assumiu a coordenação nacional desta organização não-governamental, até 2006. Entre 2012 e 2018 presidiu à European Anti-Poverty Network.

Enquanto sociedade, que transformações sofremos com esta pandemia? É possível traçar um retrato generalizado?
É muito comum em circunstâncias como esta os sociólogos ficarem entre a função de sociólogos e de astrólogos. Neste momento, ninguém consegue antecipar com certeza o impacto daquilo que estamos a viver em diferentes áreas. Temos o impacto imediato que é o da pandemia, da doença, dos problemas ligados à saúde e aos serviços de saúde, o que já não é pouco... E depois temos tudo aquilo que está relacionado com o impacto subsequente das condições económicas e sociais, a que todos estamos sujeitos, mas que não vai afetar toda a gente da mesma maneira. A crise trouxe-nos duas reflexões importantes. Uma delas, que também aconteceu durante a crise anterior, é que se alguma coisa evitou um impacto ainda pior da anterior crise económica e financeira foi, precisamente, um sistema de proteção social minimamente decente, que acabou por conseguir socorrer as pessoas em situações de desemprego, de pobreza, de emergência social – e sublinho ‘minimamente’, porque muitas das consequências da anterior crise ainda estão presentes. E agora aconteceu a mesma coisa, ou seja, ficou provado que quem tinha melhores sistemas de saúde, quem tinha melhores serviços públicos e de proteção social, reagiu melhor à crise; conseguiu, pelo menos, controlar melhor os efeitos da crise.

E o que vai acontecer daqui para a frente?
Poderia acontecer uma coisa muito boa, que era percebermos as causas desta crise pandémica. Teorias da conspiração à parte, é óbvio que muito do que se passou e está a passar tem a ver com as escolhas que fizemos, do ponto de vista ambiental, social e, sobretudo, económico. Digamos que estamos a pagar uma fatura mais ou menos óbvia daquilo que andamos a fazer nos últimos 30, 40, se calhar, 100 anos. Aprendemos alguma coisa? Parece que momentaneamente aprendemos... Uma coisa extraordinária é que chegamos a ter mais de 25% da população da União Europeia em situação de pobreza e nunca havia dinheiro para reforçar os serviços públicos, para reforçar a saúde, nem a educação, nem coisa nenhuma. E, afinal, de repente há dinheiro e agora só é preciso saber como é que o vamos distribuir e quem vai pagar algumas das faturas. Preocupa-me o impacto da crise, que ainda ninguém conhece com rigor, e as dimensões desse impacto. Temos problemas de desemprego, que pôs fora do mercado de trabalho pessoas que dificilmente regressarão. E temo que esta crise traga um problema adicional. Nós estamos todos muito disponíveis e convencidos para achar que não há alternativa – é preciso criar emprego o mais rápido possível. Mas, sempre que ouço dizer que é preciso criar emprego o mais rápido possível, tenho quase a certeza de que é contra os direitos sociais, contra os direitos laborais, de que é a qualquer preço. E o emprego a qualquer preço tem custos sociais muito elevados, nomeadamente, ao condenar, particularmente os mais jovens, a uma precariedade muito grande, que eles acabam por aceitar com uma tranquilidade assustadora.

Tendo em conta o que sabemos hoje, o país agiu bem e a tempo?
Francamente, acho que era difícil fazer mais. As ações governamentais foram as possíveis e, ao fim e ao cabo, aquelas que todos os Estados, particularmente na União Europeia, tentaram concretizar; enfim, com modelos diferentes. Houve quem achasse que o melhor era toda a gente contaminar-se, como a Suécia, mas, basicamente, todos os Estados tiveram a mesma reação, mais ou menos as mesmas medidas – a capacidade de ação é que não foi a mesma, porque, justamente, muitos países não têm serviços nacionais de saúde capazes para responder a uma crise como esta. E com isto não estou a fazer crítica nenhuma, porque é uma crise; guerra é guerra. O que foi mais surpreendente, e mais numa sociedade como a nossa, foi a mobilização da sociedade e a tentativa de fazer face à emergência, a auto-organização. Portanto, penso que a resposta foi a melhor possível. Mais do que isto, se nos últimos 50 anos tivéssemos tido outro tipo de governação económica do mundo, e da Europa nos últimos 30, provavelmente, teríamos mais recursos. Mais médicos, mais enfermeiros e condições nas escolas para um ensino à distância muito diferente... Enfim, tanta coisa que podíamos ter e, de facto, não temos, particularmente, na área da Saúde.

É correto dizer-se que os desprotegidos ficaram mais desprotegidos?
Sim, seguramente. Em Portugal, temos sempre aquele velho número terrível de dois milhões de pessoas em situação de pobreza, que tanto são um milhão e 700 mil, como são outra vez dois milhões e qualquer coisa... Mas, estruturalmente, temos este número. Estamos a falar de estatística, de pessoas que ficando com 50 cêntimos acima da linha de pobreza deixam de ser pobres, o que, evidentemente, é uma ironia muito grande. Mas obviamente que os mais desprotegidos ficaram mais desprotegidos, até porque muitos deles não puderam recorrer aos apoios que foram disponibilizados. Depois, também os grupos mais expostos à situação de pobreza, em situações mais extremas, como os sem-abrigo, também ficaram mais expostos. As comunidades ciganas são um exemplo claríssimo de que toda a exclusão e margem ficou ainda mais exclusão e mais margem. Foi a velha máxima de que não podemos socorrer toda a gente e, tendencialmente, socorríamos os que estavam mais perto. E esses não eram os que estavam mais perto; e, pior do que isso, nem sabíamos como lá chegar. Tivemos pessoas com fome, mais do que o habitual, em sítios onde quase não se conseguia chegar. Por outro lado, as crianças, e não só as de etnia cigana, onde isso aconteceu com muita frequência. As crianças, muitas delas, tinham garantida uma parte substancial da sua alimentação, e com alguma qualidade, nas escolas. Ao ficarem em casa, transformaram-se num peso muito maior para as famílias, que de repente descobriram que os filhos tomavam pequeno-almoço e almoçavam e o aumento que isso significou nos orçamentos das famílias. Portanto, as pessoas ficaram desempregadas, ficaram em layoff ou viram os seus rendimentos reduzidos e, ainda por
cima, viram as despesas a aumentar.

Há muitas preocupações...
A pergunta que se impõe, se calhar, é: como iremos reagir? Tenho muito medo. Temo que toda a gente se vá preocupar muito com a nova pobreza, com aqueles que foram afetados agora, que estavam a trabalhar e deixaram de ter emprego... No fundo, e pondo isto de uma maneira um bocadinho mais dura, tenho medo da divisão entre os bons pobres e os maus pobres, os que merecem e os que não merecem. Portanto, merecem só aqueles que foram afetados pela pandemia, que não têm culpa – ainda por cima, esta pandemia tem esta coisa; na crise económica ainda era possível apontar responsáveis, que ficaram impunes, nesta não há culpa de ninguém. As pessoas não têm culpa nenhuma de terem ficado sem emprego, as empresas não têm culpa de terem despedido as pessoas. E, portanto, estou com um bocadinho de receio que, uma vez mais, a atenção vá ser dada maioritariamente – e não estou a dizer que não deva ser dada – àqueles que estão mais próximos de estarem incluídos do que, propriamente, aos que estão mais excluídos e que eram, números redondos, dois milhões. E que, nalguns casos, sofreram alguma atenção por causa da pandemia – o caso dos sem-abrigo, por exemplo, a quem foi disponibilizado alojamento temporário e que um dia destes, muito provavelmente, voltam para as ruas. Estou com medo que as prioridades sejam todas para o emprego e as pessoas "empregáveis". E muito preocupado com o emprego a qualquer custo – o que interessa é gerar rendimentos para as pessoas, mesmo que precários, e nem que o Estado, depois, tenha de cobrir aqui ou ali com o rendimento social de inserção ou outra medida de emergência qualquer... E preocupa-me imenso, também, a área da Educação, porque tínhamos ainda um abandono escolar muito elevado, comparativamente com os países da OCDE e da União Europeia, e estas crises têm sempre um impacto forte nisto. A desconexão de muitas crianças e jovens com a escola, durante a pandemia, vai, seguramente, gerar um não regresso à escola... Espero que não, mas tenho esse receio, porque já aconteceu antes; também por serem chamados para o mercado de trabalho, para ajudar a família, porque os pais perderam o emprego, não há dinheiro para os ter na escola, e muito menos na universidade...

Importante é, de facto, uma mudança de paradigma

Há capacidade de resposta aos desafios que a sociedade enfrenta? O que pode ser feito em termos de política social?
Vamos ter de correr atrás do prejuízo, como todos. Estamos nessa fase. Para já, ainda temos o problema da pandemia, que ninguém sabe muito bem se se repete, se não repete, como se repete, o que fazemos se se repete... Agora, a sensação que começamos a ter é que, nem que isto se repita exatamente igual, não vamos ficar todos confinados outra vez, porque não é possível. É aquela escolha: ou morremos da pandemia ou morremos de fome; uma escolha muito complicada e que, obviamente, não se pode fazer. Vai haver recursos, há muito dinheiro que pode vir a estar disponível. Importante é, de facto, uma mudança de paradigma, porque se nós reconhecêssemos que chegamos aqui por nossa única e exclusiva responsabilidade – e não acho que haja um consenso assim tão alargado... –, teríamos de mudar alguma coisa para que isto não se repita, para que se corrija. Quando digo isto, é isto tudo: a dimensão ambiental, a dimensão social e, sobretudo, a dimensão económica das escolhas que temos feito. O crescimento a que sujeitamos o planeta, particularmente as sociedades ocidentais, não é compatível com a vida humana. Hoje foi uma pandemia, amanhã vai ser outra coisa qualquer e antes já tinha sido todos os efeitos do aquecimento global e outros. Por isso, correr atrás do prejuízo é inevitável, com os recursos que temos. Aquilo que eu gostava era que fizéssemos uma espécie de reset e evitássemos regressar a uma normalidade que nos condena pelas consequências nefastas do modelo que perseguimos. Mas é difícil encontrar exceções no discurso político sobre o crescimento como principal objetivo e salvação. É preciso crescer, mas estamos a rebentar de tanto crescimento mau. Nós precisamos é de regressar ao conceito de desenvolvimento, que é uma coisa muito mais interessante do que crescer. Mas insistimos na ideia de crescer, de competição com outros continentes e com outras economias, que apenas será possível jogando com as mesmas regras, o que põe em causa os pilares das nossas democracias. Para jogar com as regras da China, da Índia ou de outros países – alguns deles muito próximos da União Europeia, e alguns até dentro –, só não havendo Código de Trabalho, direitos sociais, coisa nenhuma... Eu gostava muito de ver questionado o nosso modelo, a começar pela União Europeia, porque é aqui que estamos. Assim como Portugal não pode resolver sozinho nenhum destes problemas, a União Europeia também não; tem de haver um consenso mundial para uma mudança de paradigma económico. Agora, a disponibilidade para isso acontecer é que me parece ainda bastante longínqua... O que é uma pena, porque as consequências políticas deste desaire estão já à vista...

Com um entendimento europeu seria muito mais fácil dar a volta...
Só pode ser assim. Sozinho, nenhum Estado-membro conseguiria resolver os seus problemas, nomeadamente na dimensão social. Nós somos interdependentes. É por isso que fico muito aborrecido quando a Comissão Europeia nos diz – e já diz há muito anos – que o problema da pobreza é um problema nacional. Por causa disso, não há uma estratégia europeia de combate à pobreza. E eu penso exatamente o contrário. Evidentemente, há países mais ricos e países mais pobres, por razões históricas, naturais, de dimensão, por tudo e mais alguma coisa, mas há uma responsabilidade coletiva nas escolhas que fizemos, particularmente no modelo económico pelo qual optámos há mais de 30 anos... Não é de admirar que, apesar de tudo, exista agora esta disponibilidade para aparecer dinheiro e que tal não aconteça apenas por causa da pandemia. É porque os decisores políticos, e alguns ao mais alto nível, percebem finalmente a bomba-relógio em que estão sentados. Mas ainda estamos na fase de, uma vez mais, atirar dinheiro para cima dos problemas. Ajuda? As pessoas ficam muito mais tranquilas quando têm de comer, mas não é suficiente, porque, sobretudo em alguns países, deixámos as coisas chegarem demasiado longe, do ponto de vista da deterioração da política. Isto não é uma crítica aos políticos, é à deterioração da política enquanto sistema, permitindo discursos que legitimam atitudes racistas, discriminatórias, e que deitam ao lixo anos e anos de trabalho, nomeadamente das escolas – tanto projeto, tanta coisa boa que se faz nas escolas para tentar criar cidadãos um bocadinho diferentes, em Portugal e em tantos outros sítios, e depois como consequência desses desvarios tudo se desvanece em meia dúzia de dias. Convém relembrar que a pobreza sempre esteve na origem e justificação dos piores regimes políticos da história da humanidade...

Falou de movimentos solidários... Na quarentena, assistimos a uma maior preocupação com quem está na porta ao lado; assistimos, também, a uma maior procura de refeições e, como resposta, a uma maior distribuição de comida por várias associações. A sociedade também tem um papel importantíssimo nesta ‘proteção social’?
Tem, e nós tivemos uma capacidade de resposta que nem todos os países tiveram. Mesmo nos serviços públicos de saúde. Toda a gente bateu palmas aos médicos e enfermeiros, em toda a Europa e em todo o mundo, nalguns casos com um cinismo brutal, e Portugal não foge à regra. Um pequeno aparte: dois ou três meses antes da pandemia, estávamos a insultar os médicos, os enfermeiros e os professores, porque queriam um salário digno e condições de trabalho dignas. Estou para ver daqui a três ou quatro meses... A gente esquece-se muito rápido. Sim, tivemos essa capacidade de resposta heróica, mas eu não a quero. Em relação aos enfermeiros e médicos, eu não quero heróis, quero é médicos e enfermeiros bem pagos, com direitos, com horários de trabalho, a trabalhar com a cabeça no sítio e a ter direito também a uma vida privada. Heróis, de qualquer género, eu dispenso, particularmente nestas circunstâncias. Portanto, todos os esforços que foram feitos pela sociedade para resolver problemas de emergência foram para resolver problemas de emergência, não são, nem devem ser a regra. Porque há o risco, que também já observámos durante a crise anterior, de transferir as responsabilidades do Estado para a sociedade. E nós já temos uma grande fatia de responsabilidades estatais transferida para a sociedade, de resto, com consequências bem negativas que ficaram bem à vista durante esta pandemia.

A proteção social é uma responsabilidade do Estado. Mas devemos perder o sentido de solidariedade?
Solidariedade é uma coisa, direitos sociais são outra. Eu não quero o cumprimento de direitos através de solidariedade. Mas também não quero deixar de ter solidariedade, porque vamos sempre precisar dela e faz todo o sentido que exista em muitas áreas – é ela, muitas vezes, que dá os primeiros passos na resolução de alguns problemas, que depois se transformam em respostas públicas. O apoio domiciliário, por exemplo, foi uma coisa que vi nascer em projetos de luta contra a pobreza protagonizados por organizações da sociedade civil... Uma das áreas em que temos de pensar bastante, por exemplo, é que instituições queremos; se queremos este tipo de instituições muito baseadas em modelos caritativos e que não podem ou não querem preocupar-se com todos os direitos das pessoas, porque, muitas vezes, nem sequer têm recursos para isso. Porque nós, agora, descobrimos coisas que as pessoas não imaginavam: não imaginavam que os idosos iam para um lar e estavam três e quatro dentro de um quarto; ninguém fazia ideia disso... Eu conheço muito bem os lares em Portugal. E há muito bons, excelentes, e muito maus e péssimos, como sempre, mas o modelo geral é um modelo que as pessoas desconheciam. É assim que as coisas funcionam, porque os recursos são o que são. Quer dizer, os recursos que se quer alocar ali são os que são; podiam ser outros e ser mais... Substituir uma resposta de direitos, tendencialmente, por uma resposta de solidariedade é perigoso, porque desresponsabiliza o Estado, e os exemplos a que assistimos deixaram à vista o perigo que isso constitui.

Com a pandemia, veio o teletrabalho em força. O que pensa disso?
Temos de ter muito cuidado com esta maravilha que é o teletrabalho e com o que representa. Foi uma mudança qualitativa muito grande para as nossas vidas, no sentido positivo, mas é um conto da carochinha muito complexo. Ou seja, há um lado que, teoricamente, é extraordinário. Uma parte das pessoas – e o problema começa logo aí, ‘uma parte das pessoas’, as que podem, que têm recursos, cujas profissões permitem esse tipo de coisa; portanto, já estamos a beneficiar um conjunto de pessoas dentro da sociedade e a excluir outras... Mas os que ficamos em casa e que pudemos ficar a teletrabalhar percebemos que há uma data de coisas que temos de resolver antes, do ponto de vista de regulamentação, do que significa o teletrabalho, a vida profissional e a vida privada; o que significa o espaço de teletrabalho na minha residência e a minha residência, e outras coisas do género. Porque o risco é que isto nos saia muito mal. Ou seja, para quem quer ainda mais lucro, e lucro ainda mais fácil, não há nada como reduzir custos de funcionamento, que são transferidos para os trabalhadores. Porque à maior parte das pessoas ninguém perguntou se queriam que lhes pagassem a internet, a eletricidade e tudo o que gastaram a mais para estar a trabalhar em casa. ‘Não, porque até não teve de ir para o trabalho, de pagar transportes...’ Houve até quem ficasse sem subsídio de alimentação. E estão em casa, podem fazer o que quiserem, quando quiserem. Porque o telemóvel não está a tocar a tempo inteiro, nem os emails estão a cair a tempo inteiro, e todas as outras coisas que todos experienciámos, uns mais do que outros. Mas é um admirável mundo novo, que já estava aí – em Portugal, não tinha avançado particularmente, porque somos um bocadinho conservadores, mesmo as nossas empresas. E, de repente, foi fantástico porque esses conservadores – que eram muitos, em Portugal, no mundo do trabalho e até dos serviços, que acham que empregado bom é o que está debaixo de olho – descobriram que, afinal, não era verdade. Conseguimos que as pessoas trabalhem e, se calhar, até mais e teoricamente mais satisfeitas. Só que essa é uma das partes em que nos enganamos. Isto leva a conversa para o ensino a distância, e até parece que de repente é possível fazer tudo isto à distância. Está a ver o que era acabar com as escolas? O que a gente poupava? Poupávamos uns milhões e até dava para aumentar os professores, qualquer coisita. E os miúdos gostam muito mais de estar a falar para os telemóveis... Não é bem assim. E, portanto, é uma das áreas de preocupação. Não tenho dúvida nenhuma das vantagens do teletrabalho durante a pandemia, mas também não tenho dúvida nenhuma das desvantagens e dos custos que teve para as pessoas. É um novo mundo que, sem regulamentação, poderá ser uma das maiores armadilhas para os direitos sociais e bem-estar da nossa sociedade.

Estamos a deixar ficar muita gente para trás

O ensino a distância foi um fator de discriminação?
Foi. Uma vez mais, foi o melhor que podíamos fazer. Não tenho dúvidas, acho que fizemos aquilo que melhor sabíamos fazer e tínhamos condições para fazer. Mas tenhamos consciência de que estamos a deixar ficar muita gente para trás. Lamento insistir nas comunidades ciganas, mas são o paradigma dos mais excluídos e representam muitas outras pessoas. Ficaram muito mais longe da escola, porque os meios que foram disponibilizados, ou que era suposto existirem, para as pessoas acederem ao modelo que pusemos em prática, não existiram. Já não estou a falar nas condições das crianças para estarem em casa a assistir às aulas e outras coisas do género, que não eram iguais para todos, mas essa desigualdade refletiu a desigualdade global que temos, ao ponto de deixar pessoas completamente sem escola. A escola não é só um conjunto de conhecimentos; no nosso caso, e bem, é mais do que isso: é ação social, é trabalho paralelo, feito pelos professores e por todos os profissionais que estão dentro das escolas, para a inclusão social das nossas crianças e dos nossos jovens, que é muito invisível – e é muito injusto que seja invisível... Penso que em alguns casos foi mesmo muito desigual e tenho muito medo das consequências dessa desigualdade, que pode – espero enganar-me – ter tirado pessoas definitivamente da escola.

Ainda assim, pode ser um recurso para uma nova emergência, pensando agora em todas as implicações?
Seguramente, é possível fazer melhor nessas dimensões de desigualdade. Agora que já resolvemos o problema para os outros, que são mais incluídos e que têm mais condições... Sendo que eu vi famílias de classe média atrapalhadíssimas, porque a casa em si não era capaz de dar conta do recado, porque a mãe e o pai estavam no computador o dia inteiro, e a criança também, ou a internet não funcionava com a mesma velocidade na casa toda... Para não dizer que havia pessoas que não tinham internet em casa – uma coisa dada como adquirida foi que todos tínhamos os meios mínimos para essas coisas acontecerem, e não tínhamos. Dentro da bolha em que vivemos, pensamos que é tudo igual para toda a gente... Mas, sobretudo, preocupa-me bastante que o ensino à distância se venha a replicar. Há muitas crianças e jovens que vivem em territórios muito complexos: onde deixou de haver transporte, por exemplo, onde em casa não têm nenhuma destas coisas de que estamos a falar. Preocupa-me muito a alimentação. Quatro ou cinco meses de má alimentação têm consequências estruturais numa criança e, portanto, há impactos que só iremos descobrir daqui a uns anos.

São vários grupos que levantam preocupações...
Insisti muito nas comunidades ciganas, mas dois outros grupos preocuparam-me imenso durante a pandemia e continuam a preocupar. Por um lado, as pessoas com deficiência e, dentro delas, as crianças, que estiveram, e ainda estarão, com certeza, numa situação muito diferente daquela em que estavam antes. Porque muitos dos cuidadores mais informais, em particular, não puderam fazer face a isto; porque as famílias deixaram de poder pagar; porque tanta coisa que aconteceu impediu que a capacidade de inclusão que tínhamos no sistema de ensino, e não só, pudesse acontecer. Mas, sobretudo, porque muitas das condições criadas para o ensino à distância não chegavam para todos – chegavam para os surdos-mudos, em particular, que eram praticamente o único grupo com alguma discriminação positiva no ensino à distância, mas nem sempre. Por outro lado, o grupo das crianças e jovens em risco, particularmente os institucionalizados, que precisam e merecem uma atenção muito especial.

Em termos de comportamento social, nós em sociedade, o que pode mudar a partir daqui?
Estou com muitas dúvidas. Pensei que, à semelhança de outros problemas que as sociedades já enfrentaram, íamos aprender alguma coisa. E que, de facto, íamos ser mais solidários, íamos perceber melhor que somos todos interdependentes, que ninguém é mais do que ninguém... Mas já estou a perder a esperança de que isto tenha tido esse efeito. Por um motivo simples: porque quando há fome e quando há pobreza, a tendência para o autocentramento das pessoas é muito maior. É a sobrevivência que impera e, portanto, primeiro estou preocupado em sobreviver, eu e os meus, e depois vamos lá ver se consigo fazer alguma coisa pelos outros. E temo que vá ser o outro lado deste espelho. Ou seja, aparentemente fazia todo o sentido que houvesse uma maior mobilização e coletivização dos interesses e que nos reuníssemos mais à volta dos mesmos objetivos, como seres humanos, para isso mesmo, sermos humanos. Era de esperar que tivéssemos aprendido alguma coisa. Mas, francamente, também acho que ainda estamos muito confusos; estamos muito intoxicados de informação, desinformação, contrainformação e não informação... Portanto, acho que ainda é um bocadinho cedo para tirar conclusões. Será que tudo isto realmente serviu de alguma coisa do ponto de vista da mudança coletiva para um mundo um bocadinho melhor?

Maria João Leite (entrevista)
Cláudia Oliveira (fotografia)


  
Ficha do Artigo

 
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo