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ISABEL BAPTISTA. Presidente do Conselho de Acompanhamento da Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e Provedora de Ética do Centro Regional do Porto da Universidade Católica (UCP), é professora associada da Faculdade de Educação e Psicologia da UCP e diretora da PÁGINA.
Na transição atípica entre dois anos letivos que vão ficar marcados pelas circunstâncias de uma crise sanitária ainda sem fim à vista, a PÁGINA convidou alguns colaboradores – especialistas em diversas áreas das ciências da educação – a refletirem sobre as consequências destes tempos, e dos modos como os vivemos, no presente e no futuro do sistema de ensino, das escolas e das comunidades que as habitam. Para esta edição, questionámos, essencialmente, sobre aspetos ligados à avaliação e à relação pedagógica; na próxima, abordaremos o desenvolvimento curricular e a inclusividade do sistema e da organização escolares.
A situação de pandemia terá contribuído, ou poderá contribuir, para uma (nova) reflexão sobre a identidade dos professores? Terá sido o início, ou o reforço, de uma desumanização da profissão docente? A situação de epidemia provocou um efeito desconstrutor em todas as esferas da vida, afetando, consequentemente, os modos de ser pessoa, cidadão ou profissional. Literalmente, de um dia para o outro, vimos o mundo virar do avesso. Neste contexto, os professores revelaram o seu melhor, surpreenderam e surpreenderam-se, demonstrando um notável profissionalismo. E não falo apenas da forma como responderam às exigências de ensino remoto de emergência, com tudo o que implicou de adaptação repentina a novas dinâmicas de trabalho e a novas ferramentas. Falo, sobretudo, do esforço, delicado e invisível, que fizeram para, na medida do possível, continuar a ir ao encontro de cada aluno. Apesar das muitas dificuldades e frustrações, a experiência de ‘escola em casa’, vivida com angústia e ansiedade por todas as partes envolvidas, permitiu evidenciar os traços de humanidade que, a um nível essencial, definem a condição docente. Para ser sincera, não acredito que a pandemia venha a produzir efeitos radicais nos processos de reinvenção existencial ou profissional, apesar das boas intenções que encheram os numerosos ‘diários de confinamento’; um fenómeno que, só por si, merece reflexão. Mas estou convicta de que, a par do reconhecimento da relevância social da escola, o apreço pela presença humana daquele que ensina – o professor – saiu claramente reforçado. As situações críticas põem, efetivamente, à prova o melhor e o pior da condição humana. Neste caso, entre as inegáveis fragilidades do sistema de ensino, vieram também ao de cima as suas forças, entre as quais sobressaiu, sem sombra de dúvida, o verdadeiro carácter, o ethos, da profissionalidade docente.
Em 2018, a PÁGINA abriu um debate sobre a eventualidade de uma candidatura da relação professor-aluno a Património Imaterial da Humanidade, junto da UNESCO. O impacto da crise sanitária na Escola e na vida profissional dos educadores e professores reforça ou fragiliza essa possibilidade? Não sei se a inscrição da relação educador-educando na lista do Património Imaterial da Humanidade é uma possibilidade real, considerando os requisitos da UNESCO neste âmbito. Mas sim, a ideia que serviu de base ao desafio lançado pela PÁGINA [n.º 211], continua a fazer sentido. Tal como dizíamos então, a relação entre professor-aluno, entre educador-educando, constitui uma alquimia única, uma marca para a vida, um tesouro imaterial da humanidade. A educação – isto é, a responsabilidade de contribuir intencionalmente para a formação de outros seres humanos – representa uma das formas mais sublimes e mais importantes de atividade humana, na base da qual está um encontro interpessoal, uma experiência intersubjetiva, irredutível a uma expressão meramente técnica. Esse encontro de natureza pedagógica, ancorado num exercício de responsabilidade docente inalienável, funciona como pedra angular de todo o ato educativo, enquanto ato eminentemente relacional. Não por acaso, os professores são recorrentemente citados nas memórias individuais como figuras de referência, recordadas, justamente, a partir das suas qualidades humanas. Por outro lado, colocar a relação pedagógica como questão agregadora de um debate público sobre a educação escolar, em meu entender, permitiria dar visibilidade às dimensões mais exigentes e impercetíveis da docência. Reafirmo, pois, a pertinência do desafio lançado pela PÁGINA e a necessidade, cada vez mais premente, de contrariar as lógicas de burocratização, tecnicização e desumanização do ato educativo.
Perfil dos alunos, decretos sobre inclusão, autonomia e flexibilidade, estratégia nacional de cidadania, aprendizagens essenciais... Os documentos reguladores do sistema educativo e da organização escolar requerem, ou não, a redefinição do perfil docente? Em que medida, a atual formação de professores (inicial e contínua?) acompanha essa necessidade? Encaro os normativos sobretudo como referenciais de ação que, como tal, podem facilitar ou dificultar o exercício autónomo, reflexivo e criativo de cada organização ou de cada profissional. Neste sentido, considero que em termos de políticas educativas vínhamos já fazendo um caminho importante no sentido de assegurar formas de ensinar e de aprender mais flexíveis e inovadoras. Aliás, a PÁGINA abriu propositadamente um espaço para partilha de reflexões, testemunhos, projetos e experiências sobre os processos de inovação e flexibilização curricular em curso. Nesse âmbito, foi sendo lembrado, também, que o desafio em causa requeria condições organizacionais e laborais específicas. Precisamente, as condições que agora, em contexto de pandemia e na hora de retomar as atividades letivas presencias, fazem tanta diferença. No que diz respeito a necessidades de formação, e tal como tenho vindo a defender ao longo dos anos, julgo que, numa lógica de ampliação e renovação dos espaços de autonomia institucional e pedagógica, importa investir seriamente na formação sobre as questões de ética, de identidade profissional. Refiro-me à reflexão sobre os valores e sobre os padrões de conduta característicos da docência, mas também, ou principalmente, à necessidade de desenvolvimento de aptidões de deliberação prática, associadas à capacidade para tomar decisões em contexto e em relação. Em situações de dúvida e de incerteza, portanto. Sem querer desvalorizar o objetivo estratégico de rejuvenescimento do corpo docente, penso que, em termos de profissionalidade, a verdadeira renovação passa sobretudo por aqui. Recordo, a este propósito, que, em 2019, o lema do Dia Mundial do Professor foi "Jovens Professores: O futuro da profissão". E a proposta da UNESCO já para este ano inesquecível e excecional é “Teachers: Leading in crisis, reimagining the future”, algo como “Professores: Liderando em crise, reimaginando o futuro”. Ou, como nós gostamos de dizer, somos professores, damos rosto ao futuro.
Com a diversidade/multiplicidade de fontes de ‘saber’ disponibilizadas e atualizadas pelas novas tecnologias, o que sobra para escolas e professores na partilha/aquisição de conhecimento(s) e no desenvolvimento pessoal dos alunos? Os professores são profissionais do humano e, nessa qualidade, promotores do desenvolvimento integral dos alunos. Um imperativo que ganha especial acuidade nos dias que correm, apelando à intervenção articulada, lúcida e firme, dos humanistas de todo o mundo. Num contexto em que assistimos a fenómenos de obscurecimento e de retrocesso das virtudes da participação cidadã, o compromisso com uma educação desde e para os direitos humanos justifica-se mais do que nunca. Citando Edgar Morin, a chegada deste vírus veio lembrar-nos que a incerteza permanece um elemento incontornável da condição humana, mas tal não significa que estejamos condenados a naufragar na angústia ou a sucumbir à cultura do medo. O que precisamos é de aprender a conviver com as incertezas, persistindo em ensinar, nas escolas e nas universidades, as verdades essenciais da condição humana. O que, desde logo, nos remete, uma vez mais, para a importância da relação com o outro ser humano, o imprevisível por excelência. Numa obra que recomendo, «A Cruel Pedagogia do Vírus», Boaventura Sousa Santos fala-nos no ‘vírus’ como de uma espécie de ‘professor’. E de certa maneira, representando um intruso que apareceu na nossa vida como hóspede indesejado e ameaçador, o vírus provocou transformações sociais profundas sobre as quais é necessário refletir. Julgo, no entanto, que é importante não confundir a novidade do vírus, e as ‘lições’ que devemos tirar desta experiência coletiva terrível, com o testemunho de alteridade vindo da interpelação do outro, que é outra pessoa, com o respeito pela “verdade do rosto”, como diria Emmanuel Lévinas. Quem diz rosto, diz singularidade humana em toda a sua força expressiva, condição paradoxal de pluralismo e de diversidade social. Essa expressão pode ser vista, sentida ou escutada; pode chegar-nos através de uma obra de arte, de um gesto, de umas mãos enrugadas ou através do brilho dos olhos que nos olham, mesmo por detrás de uma máscara.
Questionamo-nos recorrentemente sobre o que é ser professor, mas esquecemos frequentemente o outro lado da ‘barricada’... O que é ser aluno, hoje? Escolas e professores consideram esta questão? Ou estão focados, sobretudo, no currículo e no cumprimento dos programas? Esta é uma boa questão. Apesar da constatação recorrente de que os alunos constituem o centro de toda a atividade educativa, nem sempre valorizamos a sua condição de autores e atores. Mais uma vez, recordo que a PÁGINA tem dado especial destaque a esta preocupação, nomeadamente através da divulgação de iniciativas de referência sobre a participação dos alunos na vida escolar. Na resposta anterior insistia na necessidade de formação integral dos alunos, visando a sua capacitação enquanto seres humanos livres e ativamente implicados no exercício da sua cidadania. Ora, só se aprende a participar, participando. Dizemos com muita frequência, que queremos ter alunos participativos e envolvidos. Mas é importante lembrar que a participação dos alunos não decorre de uma opção metodológica, de uma escolha pedagógica, que poderá ou não ser feita em função da decisão dos professores. A participação dos alunos é um direito fundamental. Um direito que é preciso respeitar e promover. E isto é válido para todos os níveis de ensino, incluindo o Ensino Superior. Os alunos têm o direito a ter voz ativa nas matérias que lhes dizem diretamente respeito, e não só. E essa voz precisa ser escutada e enfatizada mais do que nunca, começando pela atenção à forma como viveram, como foram afetados, pela situação de epidemia, em particular pela experiência de confinamento, que em muitos casos implicou situações de sofrimento, de perdas e luto. Por outro lado, enquanto jovens, os alunos são portadores de desejos de esperança e de futuro. Nessa medida, a sua palavra pode constituir uma fonte preciosa de energia transformadora. Importa, pois, escutar os alunos, alimentando a sua vontade de ‘ser alguém’ e de mudar o mundo. Um mundo global, onde as questões climáticas, por exemplo, assumem capital importância, dando origem a manifestações públicas incríveis, como temos visto. Mas também um mundo próximo, onde muitos dos seus companheiros de juventude sofrem privações de vária ordem e onde os mais velhos apelam a um cuidado mais atento e sensível. Enquanto lugar de convivência, de socialização e de aprendizagens significativas, a escola deverá promover junto dos jovens os valores fundamentais de uma cidadania solidária, incluindo os que dizem respeito à solidariedade entre gerações.
Em termos de comunicação e relação pedagógica, será mais eficaz um regime presencial retraído por regras sanitárias (máscara, distanciamento e interações desaconselhadas, instrumentos e recursos físicos não partilhados) ou uma relação vis-à-vis mediada por dispositivos tecnológicos? Pedagogia ou tecnologia, o que ‘manda’ mais na atual condição docente? Creio que já fui respondendo, mas reforço a ideia fundamental: seja em que circunstância for, a tecnologia deve estar ao serviço da pedagogia e nunca o contrário. Lembrando sempre que na base da pedagogia está a centralidade da relação interpessoal desenvolvida entre o educador e o educando. Ou seja, o recurso, justificado, aos modos de educação digital não dispensa o professor. Pelo contrário, tornam o seu papel mais necessário e mais exigente. Reconheço a utilidade das ferramentas tecnológicas ao nosso alcance e o ‘salto tecnológico’ que representou o esforço de teletrabalho dos últimos meses. Mas penso que, durante esse período, muito do sucesso conseguido ao nível da comunicação pedagógica mediada pela tecnologia só foi possível graças à existência de um conhecimento pessoal prévio. Os professores sabiam que, para lá do ecrã, estavam a Mariana, o António ou a Jacinta. Era com esses sujeitos de rosto que falavam e de quem iam à procura, em caso de silêncio ou ausência. A avaliar pelos testemunhos que vêm sendo divulgados, tanto os professores como os alunos preferem a educação presencial, mesmo com restrições. Assim, valorizando todas as formas de interação que possam ser potenciadas pela mediação tecnológica, tenho receio de que a necessidade de resposta aos desafios de “educação digital” possa vir a servir de pretexto para o reforço das dimensões instrumentais do trabalho docente. No embalo do entusiasmo, natural e legítimo, gerado pelos avanços conseguidos em termos de literacia digital, corremos o risco de ir transformando a exceção em regra, perdendo a noção das prioridades. A necessidade de contacto presencial constitui, constituirá sempre, uma necessidade humana, educativa, vital.
Com a diversidade de recursos que o ensino à distância veio a ‘revelar’ e com a intervenção de terceiros no acompanhamento das tarefas escolares dos alunos, a especificidade e relevância da profissão docente não fica posta em causa? A autoridade da profissão docente só poderá sair robustecida do diálogo interdisciplinar, interprofissional e interinstitucional. Desde há duas décadas que me dedico à área da Pedagogia Social, tendo podido testemunhar no concreto a importância decisiva do trabalho pedagógico em colaboração, em rede, com outros profissionais e com outros atores locais. Como tal, espero, sinceramente, que as dinâmicas de cooperação motivadas pela resposta à pandemia tenham permitido reforçar a necessidade de cooperação permanente entre as escolas, as famílias e as comunidades. Até porque, num cenário de grande vulnerabilidade, percebemos que, como sempre, uns são mais vulneráveis do que outros. E de modo especial junto destes, junto dos alunos que, apesar de todos os esforços, foram ficando ‘de fora e para trás’, a mediação qualificada dos chamados profissionais da intervenção socioeducativa – como os educadores sociais, por exemplo – pode fazer muita diferença. A este respeito, convido os leitores a revisitarem os textos da PÁGINA dedicados às questões de pedagogia social, chamando particular atenção para os de Ana Vieira e Ricardo Vieira (colaboradores permanentes), reunidos em «Pedagogia Social, Mediação Intercultural e (Trans)formações» [Profedições, Coleção aPágina, n.º 05]. Parafraseando outro dos nossos colaboradores, João Barroso, uma escola inclusiva é uma escola socialmente incluída. Numa altura em que somos desafiados por novas formas de pobreza, a exigência de uma escola humanista e democrática, uma escola capaz de acolher todos os alunos e todos os grupos socioculturais, em condições de equidade e justiça, torna-se num imperativo ético-político crucial.
No início de um ano letivo cada vez mais sob o espetro de uma segunda vaga pandémica, que mensagem podemos/devemos dirigir à comunidade educativa e à sociedade em geral? Reafirmando tudo o que disse antes, creio que a palavra-chave neste início de ano letivo será confiança. Confiança como condição base de um trabalho cooperativo consistente e perseverante, desenvolvido em condições de segurança e em contexto de comunidade. A exigência, circunstancial, de distanciamento físico não pode dar lugar a uma cultura de alheamento e indiferença. Para tal, precisamos de continuar a fazer da escola um lugar de aprendizagens múltiplas, de bem-estar, de liberdade e de realização; um lugar relacional por excelência, onde a educação constitua, verdadeiramente, uma oportunidade acessível a todos. Nesse sentido, é hora de autorizar, de estimar, as escolas e os professores, promovendo, infatigavelmente, uma cultura de hospitalidade, de solidariedade e de compromisso social. Não podemos permitir, de modo nenhum, que a utopia do humano que sustenta as sociedades democráticas do nosso tempo seja ‘infetada’ pelo discurso da desconfiança e do medo.
António Baldaia (entrevista)
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